O atestado de óbito da palavra do Estado
A crise dos precatórios no Brasil há muito deixou de ser uma discussão sobre finanças e se tornou um escândalo público e que afeta milhares de pessoas direta e indiretamente. Só em São Paulo, o município mais rico do País, a lista de precatórios inscritos para o orçamento de 2024 da Prefeitura revela uma fila de 11.519 cidadãos. Esse contingente, depois de vencer na Justiça, aguarda o pagamento de seus direitos. Desse total, no entanto, 1.329 já não podem mais esperar porque morreram. Demorou tanto para o pagamento dos precatórios que esse direito acabou sendo transferido para os seus herdeiros.
Os números, quando despidos da frieza estatística, revelam uma tragédia humana de proporções alarmantes e que parece não encontrar eco na classe política e nos gestores municipais, estaduais e federal. Este não é um dado, é um atestado de óbito da eficácia do sistema judicial e da palavra do Estado. A recém-promulgada Emenda Constitucional 136/2025, originada da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 66/2023, não chega, portanto, como uma solução, mas como a lápide que oficializa, prolonga e perpetua essa tragédia.
É preciso que se diga que por trás de cada precatório há uma história de vida. São servidores aposentados, famílias desapropriadas, cidadãos que sofreram danos por negligência estatal e buscaram no Judiciário seu último refúgio. A vitória nos tribunais, que deveria ser o fim de uma longa jornada, transformou-se, para muitos, em um fardo póstumo, uma herança de frustração.
Essa fila da morte não é um fenômeno recente, mas um problema crônico que se arrasta ao longo da história. Relatos publicados muitos anos atrás pintavam um quadro desolador. Em 2009, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já estimava que mais de 70 mil credores de precatórios haviam morrido no Estado de São Paulo na fila de pagamento, que estava parada desde 1998. Esse dado demonstra um padrão de negligência estatal contínua, uma cultura de adiamento que a EC 136 vem para agravar e, pior, para legitimar sob o manto de uma emenda constitucional.
A normalização dessa espera é tão profunda que o próprio sistema jurídico desenvolveu mecanismos para lidar com ela como se fosse uma ocorrência rotineira. O direito reconhecido em vida converte-se, após a morte do credor, em um complexo e oneroso processo de inventário e habilitação dos herdeiros. A justiça que não chegou a tempo se transforma em um novo labirinto burocrático para a família.
A existência desses procedimentos revela uma aceitação tácita do sistema. A morte do credor tornou-se uma variável previsível na equação do pagamento da dívida pública. A EC 136, ao prolongar indefinidamente essa espera, não está apenas criando um problema; está se aproveitando de uma solução biológica que o Estado já aprendeu a tolerar.
Sob o pretexto da sustentabilidade fiscal, a EC 136 foi desenhada não para quitar a dívida, mas para torná-la impagável. Seu mecanismo principal é a amortização negativa: os pagamentos anuais feitos pelas prefeituras serão, em muitos casos, inferiores aos juros e à correção da própria dívida. O resultado é que, mesmo pagando, o débito total aumenta. Para o cidadão, o efeito mais perverso é o congelamento da fila cronológica. Com os recursos anuais drasticamente reduzidos, o dinheiro será quase todo consumido por pagamentos prioritários (como os de idosos e doentes graves), não sobrando verba para fazer a fila principal andar. Para o credor comum, a mensagem é clara: a espera, que já era longa, pode se tornar infinita.
A aprovação da Emenda Constitucional 136/2025 não foi uma decisão técnica de gestão fiscal. Foi uma escolha moral sobre o tipo de país que o Brasil aspira ser. E a escolha feita foi a de um Estado que não honra a palavra, não respeita as próprias leis e abandona os seus cidadãos, mesmo depois de lhes ter dado razão em seus tribunais.
Retomando a imagem dos 1.329 credores de São Paulo que morreram esperando seus pagamentos, eles são as primeiras vítimas de um sistema que já era falho, mas que agora tem sua situação agravada e prevista na Constituição. A EC 136 é a garantia de que essa lista macabra só irá crescer. Não é uma solução, é a formalização da fila da morte como política de Estado. A questão que a sociedade e, em especial, o Supremo Tribunal Federal devem agora responder na ADI 7.873, movida pela OAB, não é se a emenda alivia as contas dos prefeitos, mas se um país pode se considerar justo quando transforma sua lei maior em um instrumento para negar a Justiça.