6 de outubro de 2025
Politica

O que a fala do secretário da Guerra dos EUA revela sobre o bolsonarismo e o Exército brasileiro?

Uma reunião estranha. Um secretário que prefere ser chamado de secretário da Guerra e seu presidente mandam reunir 800 oficiais generais e sargentos vindos de todos os cantos do mundo em Quantico, na Virgínia, para mostrar que “ao meu comando” todos devem pensar como o chefe. Seria trocar o juramento de lealdade à Constituição pela lealdade ao líder?

Oficiais generais convocados para a reunião na base dos fuzileiros navais em Quantico, na Virgínia, para ouvir Hegseth e Trump, no dia 30 de setembro
Oficiais generais convocados para a reunião na base dos fuzileiros navais em Quantico, na Virgínia, para ouvir Hegseth e Trump, no dia 30 de setembro

Ao ouvir o discurso de Pete Hegseth, seguido pelo de Donald Trump, é impossível não se recordar do general Mark Milley, aquele que se desculpou por ter acompanhado fardado o chefe em uma saída de Trump próxima à Casa Branca, durante protestos, e que reagiu, prontamente, contra a tentativa de invasão do Capitólio, no dia da confirmação da posse de Joe Biden. O que a reunião em Quantico buscava mostrar aos generais é que um novo Milley não seria tolerado.

Nada contra o que Hegseth pregou existe de fato nas Forças Armadas dos EUA. O espírito espartano em contraposição ao ateniense parece desconhecer que a guerra hoje é multidomínio e não mais combatida por hoplitas. Não há uma epidemia de militares obesos e barbados. Nem os quartéis se transformaram em um clube da luluzinha. Mas a China continua sendo uma ameaça aos Estados Unidos. E outros polos de poder começam a despontar, como a Índia.

A coluna foi ouvir alguns militares brasileiros sobre suas impressões a respeito do discurso de Hegseth e as implicações para nova Estratégia Nacional de Defesa dos EUA. Um deles resumiu bem a cena e o espírito do que se viu: o coronel Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEx). “Ouvi integralmente o discurso. Até 5 minutos e meio é um discurso com generalidades, que poderia ser dito por qualquer pessoa”, afirmou.

O sceretário da Guerra Pete Hegseth discursa para oficiais generais na base dos fuzileiros navais em Quantico: generais obesos e barbudos
O sceretário da Guerra Pete Hegseth discursa para oficiais generais na base dos fuzileiros navais em Quantico: generais obesos e barbudos

Paulo Filho continuou sua análise, afirmando: “A partir de então, ele fala do que vai tratar: ‘Essa conversa aqui hoje é sobre cultura, hoje vamos falar de cultura’. E começa a desenhar um quadro do Exército americano que não é real. Quantos oficiais americanos barbados você já viu na sua vida? Um ou outro, exceção. O Exército virou woke, perdeu poder combativo? Isso é uma falácia. O Exército americano é a mais poderosa força armada de todos os tempos; não tem comparação com nenhuma outra”.

O coronel prosseguiu: “Hegseth disse que os padrões de mulher e de homem em funções de combate vão ser iguais. Mas eles já são iguais. Disse que vão fazer dois testes físicos por ano. Já são dois. O que chocou os generais presentes, com 30, 40 anos de serviço, é que eles sabem que o Exército que o Hegseth diz que precisa mudar, já é tudo isso. Isso é que chocou, essa guerra cultural sendo levada ao Exército americano”.

Paulo Filho não disse. Mas a vitória de Hegseth em sua guerra cultural interessa apenas ao seu grupo político. Só ele sairá vitorioso se o secretário tiver sucesso em sua cruzada. A questão é: os militares americanos têm os anticorpos necessários para resistir à tentação autoritária de transformar as Forças Armadas em braço armado de um grupo político? Décadas de controle civil objetivo e de fidelidade à Constituição e não a um líder resistirão ao novo governo Trump?

Hegseth cumprimento Donald Trump durante reunião com mais de 800 militares em Quantico, na Virgínia; plateia permaneceu em silêncio durante fala do presidente
Hegseth cumprimento Donald Trump durante reunião com mais de 800 militares em Quantico, na Virgínia; plateia permaneceu em silêncio durante fala do presidente

Hegseth tomou o palco para exibir espantalhos a uma plateia, cuja maioria sabia que o único espalho verdadeiro era o próprio secretário. Falou contra a ideologia woke, como se o Exército fosse decadente por causa da ascensão de mulheres combatentes, como Laura Richardson. Ou como se estivesse entre os barbudos da Ilha de Fidel Castro ou do Irã dos Aitolás.

Pregou contra os obesos, como se generais fossem tenentes que comandam um pelotão. Ou fossem glutões que se refestelam em banquetes pantagruélicos, enquanto o chefe vive na academia ouvindo The Battle Hymn of the Republic, antes de ir reunir com oficiais para colocar as suas verdades em marcha… É de se perguntar, como, afinal, os EUA não foram invadidos pela China diante de um Exército de efebos atenienses e especialistas em linguagem neutra?

Hegseth é a manifestação de uma ideologia, que acha mais importante o inimigo interno, que quer escolher quem é o povo e quem dele não faz parte. Quer redirecionar suas forças ao hemisfério ocidental, combater o narcotráfico, a imigração e outros “inimigos internos”. A Argentina de Videla sabe o que isso significa.

O então presidente Jair Bolsonaro nas comemorações do Dia do Soldado, no Quartel-General do Exército, em Brasília, ao lado dos então comandantes das Forças (da esq. para dir.), general Freire Gomes, almirante Almir Garnier e brigadeiro Carlos Baptista Júnior
O então presidente Jair Bolsonaro nas comemorações do Dia do Soldado, no Quartel-General do Exército, em Brasília, ao lado dos então comandantes das Forças (da esq. para dir.), general Freire Gomes, almirante Almir Garnier e brigadeiro Carlos Baptista Júnior

Pior. Trata-se de uma política militar tão “produtiva” quanto a desejada pelos pacifistas europeus nos anos 1980. Há 40 anos, François Mitterrand lembrava aos manifestantes pela paz a dura realidade da disputa de poder entre as nações “Os pacifistas estão a Oeste e os mísseis, a Leste”. Os traficantes de droga estão, hoje, no Caribe e os mísseis hipersônicos, no Pacífico. A arrogância só leva à derrota. Seja em Siracusa ou nas Malvinas.

Nunca é demais, em momentos de crise, lembrar Samuel Huntington: “A menos que seja criado um novo equilíbrio, a contínua ruptura das relações entre civis e militares não pode ajudar, mas prejudicar a dimensão do profissionalismo militar no futuro. Um corpo de oficiais políticos, dividido em facções, subordinado a fins ocultos, ressentindo-se de prestígio, mas sensível aos apelos da popularidade, colocaria em perigo a segurança do Estado”.

O Brasil passou por situação semelhante à dos EUA durante o governo de Jair Bolsonaro. O discurso do presidente galvanizou parte considerável dos militares. Muitos se deixaram envolver pela ideia de que estavam salvando o País da corrupção, não só política, como também dos costumes. Outros, simplesmente, deixaram-se seduzir pelas tentações de Brasília, da vaga coberta no estacionamento ao privilégio de ouvir os gracejos presidenciais.

Mas… E se o bolsonarismo voltasse ao poder em 2026? Em vez de comício na porta de quartel, veríamos um presidente exigindo juramento de fidelidade dos generais e promovendo uma caça aos “melancias” e legalistas que impediram o golpe de 2022? No Forte Apache, em Brasília, afirma-se a existência de um consenso na caserna. O Exército aprendeu a lição. Nenhum radical – à direita ou à esquerda – teria sucesso em cooptá-lo para uma aventura. Para o bem e para o mal – lembrou um general – os militares brasileiros são diferentes dos americanos.

 

 

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