A República e a lógica do não-saber
“A quem exatamente eu iria denunciar?”, perguntou Eduardo Tagliaferro, dias atrás. Ele depôs três vezes no Congresso, fez denúncias graves e diz ter provas. O resultado é curioso. Ao invés de investigar o que ele diz, é ele o investigado. Contas bloqueadas, pedido de extradição e tudo que sabemos. Como quase tudo no Brasil dos últimos anos, seu caso caiu na vala comum da guerra política. E isto não deveria ser assim.
Tagliaferro coordenou a área de “enfrentamento à desinformação”, no TSE. Uma de suas denúncias fala do uso de opiniões políticas na internet para incriminar aquelas pessoas presas no pós-8 de janeiro. O sujeito postava uma crítica mais ácida ao Tribunal ou um elogio a Bolsonaro e ganhava um “positivo”, em uma planilha. E por aí poderia ser preso. Meras opiniões políticas tomadas como “crimes”? Valeria saber se ele está dizendo a verdade? Tagliaferro diz coisas ainda mais complicadas. Assegura que foi orientado a forjar um documento oficial incriminando aquelas pessoas censuradas no famoso grupo de WhatsApp, em 2022. De minha parte, não acho que algo assim possa ter acontecido, em nossa República. E penso que isto deveria ser investigado por um órgão de fato imparcial. Até mesmo para que nenhuma suspeita paire sobre nosso sistema de Justiça.
Vai aí uma boa síntese do transe brasileiro atual. Parte da mídia trata o caso como mais uma peça de nosso fla-flu político. Uma “estratégia bolsonarista contra o STF”, como li, por estes dias. Na algazarra política ele é traidor, para alguns, e herói, para outros. O que é uma tremenda bobagem. Suas informações são de interesse público. E é isto que deveria importar.
Seu caso me lembrou o de Mark Felt. O “Garganta profunda” do caso Watergate. Todos conhecem a saga investigativa de Bob Woodward e Carl Berstein. Em algum momento, eles decidiram levar a sério as denúncias de um funcionário delator, vindo de dentro do próprio sistema. O caso envolvia a Casa Branca na invasão do QG do Partido Democrata. Envolvia o próprio Nixon, e todos sabemos o desfecho. Talvez nos falte um Berstein ou um Woodward neste país acomodado. Ou quem sabe certos valores comuns que desejamos preservar, acima dos humores da política.
Nos Estados Unidos há o Whistleblower Protection Act, que protege cidadãos com denúncias relevantes. É assim que funciona, em grandes democracias. No Brasil, vemos o contrário. E no fundo é isso que incomoda. Uma democracia pode viver com os gritões de redes sociais e mesmo com uma mídia que muito pouco investiga. Mas não com um aparato de Estado que recusa a investigação de si mesmo. Que opta pela lógica confortável do “não saber”. Lógica algo estranha, vamos convir, para a democracia republicana que um dia imaginamos construir.