Vladimir Herzog: 50 anos depois, uma memória viva
Há histórias que precisam ser contadas agora e sempre – como a de Vladimir Herzog. Neste mês de outubro de 2025, completam-se cinquenta anos da morte de Vlado, como o chamávamos. Creio que quase todos sabem que ele é um mártir da resistência à ditadura militar e que a reação da sociedade a seu assassinato foi um golpe fundo no regime instaurado em 1964. Por isso, escrevo sobre o jornalista, o colega, o profissional com quem convivi na TV Cultura, onde ele era diretor de jornalismo e eu, chefe de reportagem naqueles dias tensos de 1975.
Transformar o símbolo numa pessoa de carne e osso, com ideias, aspirações e uma visão clara do que era fazer jornalismo, é o objetivo do Instituto Vladimir Herzog, do qual sou conselheiro, que hoje batalha pela liberdade de imprensa, democracia e direitos humanos, mas também preserva a trajetória profissional e os anseios de seu inspirador.
Ele começou no Estado de S. Paulo, entre 1959 e 1963. Foi aqui que Vlado cobriu a inauguração de Brasília em 1960, sendo coautor da manchete “Brasília é a capital”, com matérias de olhar crítico sobre os “discursos ocos e das casacas e cartolas maquiadas pelo poeirão goiano”.
Uma outra cobertura mudaria sua relação com o país: a visita do filósofo francês Jean-Paul Sartre ao Brasil, em setembro de 1960. Seu amigo Luiz Weis diria que “via Sartre, ele descobriu o engajamento”. Em 1962, ao cobrir o Festival de Mar del Plata, endossou a premissa: a arte deve ser útil à coletividade.
Mas Vlado estava longe de reduzir o jornalismo a ferramenta para manipular fatos. Quando assumiu a direção de jornalismo da TV Cultura, em setembro de 1975, deixou claras suas convicções. Para ele, o jornalismo deveria ser “um instrumento de diálogo, e não como um monólogo paternalista”, precisando “espelhar os problemas, esperanças, tristezas e angústias das pessoas às quais se dirige”.
Defendia que “um telejornal de emissora do governo também pode ser um bom jornal e, para isso, não é preciso ‘esquecer’ que se trata de emissora do governo. Basta não adotar uma atitude servil”. Era uma posição corajosa quando o AI-5 sufocava o país. Vlado buscava, como outros entre nós, abrir brechas, explorar espaços para derrotar a ditadura politicamente, pois sabia que derrubá-la pela força era inviável.
As pressões começaram imediatamente. Um documentário sobre Ho Chi Minh gerou atrito. O colunista Cláudio Marques iniciou campanha contra o “domínio comunista” na Cultura. O coronel Paiva, do SNI, reclamou da cobertura sobre antifranquistas condenados à morte na Espanha.
Na quinta-feira, 23 de outubro de 1975, ele recebeu mais um aviso: estava na lista do DOI-CODI. Eu estava preso desde 17 de outubro e consegui fazer chegar a ele, por meus familiares, o alerta. Vlado recusou-se a fugir. Disse que tinha trabalho e que, não sendo criminoso nem subversivo, poderia responder a qualquer pergunta. Na sexta, agentes apareceram na TV Cultura. Os colegas de redação conseguiram negociar que sua apresentação fosse adiada para a manhã seguinte.
Na manhã de sábado, 25 de outubro, Vlado acordou cedo, tomou banho, fez a barba. Estava tranquilo – ou ao menos tentava transparecer calma. Tomou café e pegou um táxi rumo à Rua Tomás Carvalhal. Seu corpo saiu de lá num saco de plástico preto para o IML, onde um médico sabujo acobertou o assassinato, validando a tese do suicídio absurdo, mais um em longa lista de falsidades semelhantes.
É preciso lembrar sempre: Vlado foi morto por um torturador que jamais foi punido, embora tenha admitido que interrogou o jornalista. Há depoimento de Rodolfo Konder, levado à sala de tortura numa pausa e que viu Herzog. Mas a morte foi uma política de Estado, para a qual o general Ernesto Geisel deu seu aval expresso.
Documentos da CIA divulgados em 2018 revelaram que Geisel autorizou a continuidade de execuções sumárias de “subversivos perigosos”. Um memorando de abril de 1974 descreveu reunião em que foi informado que a política de execuções, que matara mais de cem pessoas, continuaria sob controle do general João Batista Figueiredo, chefe do SNI. Geisel não era o moderado empenhado em adocicar a ditadura.
Para marcar os cinquenta anos de sua morte, o SESC realiza nos dias 30 e 31 de outubro, no Centro de Pesquisa e Formação, o projeto “Vladimir Herzog, IA e Memória”: entrevista com chatbot treinado com reportagens do jornalista, e debate sobre desafios éticos da tecnologia na memória coletiva. Participam Caco Barcellos, Mariana Castro e os professores Eugênio Bucci e Leonardo Foletto.
Cinquenta anos depois, precisamos lembrar não apenas de como Vlado morreu, mas de como viveu e trabalhou. Ele entendia o jornalismo como atividade que deveria contribuir para melhorar a vida das pessoas, sempre com ética e comprometimento social. Essa é a memória que vale preservar – junto com a exigência permanente de justiça.