21 de outubro de 2025
Politica

Uma dívida com o futuro

Quando me proponho a escrever sobre a educação, assunto cuja importância para o desenvolvimento de uma sociedade justa não equivale à atenção que se lhe dedicam os sucessivos governos, idealizo um cenário no qual poderia tão somente fazer um balanço otimista dos avanços que tenhamos alcançado ao longo da história na formação de cidadãos livres e iguais.

A realidade, porém, que se interpõe a este “sonho”, é a de comunicar, não sem um certo pesar, os caminhos não-percorridos, as montanhas não ascendidas; naquilo que pode ser representado, tomando emprestada a expressão de Fernando Pessoa na poesia sobre “esta velha angústia”, como a enunciação de um eterno “poder-ser”.

A concretização do que podemos ser, passa, por certo, pela aposta real e séria no caminho da educação. Não como panaceia, mas enquanto eixo primordial de atuação.

Em 1929, María Zambrano assinalou, nos primeiros compassos de “Horizonte do liberalismo”, que a tonalidade e a cor de cada época são dadas, mais do que pela resposta que se dá a certos questionamentos, pelo que se escolhe responder, ou seja, pelo elemento do universo ao qual se presta atenção e com o qual se dialoga. Para isso, é fundamental ter a coragem de não desviar o olhar da realidade, empenhar-se em olhar e deter-se a fazê-lo com claridade. Sem um exercício prévio de observação comprometida do mundo, nossa ação se torna inoperante.

Nada haverá pelo que lutar se antes não houver um esforço por atentar ao que se passa. E o que se passa na educação brasileira? Embora necessário, o diagnóstico não é animador.

O retrato que se delineia a partir dos dados e das evidências disponíveis revela um cenário de preocupante estagnação no percurso de desenvolvimento da educação básica – nosso maior e mais urgente desafio. Embora tenhamos conseguido universalizar o acesso, esse avanço não se refletiu, na mesma medida, na qualidade da aprendizagem em sala de aula.

Grande parte dos alunos concluem os anos iniciais e finais do ensino fundamental sabendo menos do que o necessário das disciplinas de língua portuguesa e matemática para terem autonomia e exercerem sua cidadania na vida em sociedade, como demanda o art. 205 da nossa Constituição Federal.

No âmbito da primeira infância, deveríamos ter chegado a 2024 com pelo menos metade das crianças de 0 a 3 anos frequentando a creche. No entanto, nenhuma região do Brasil conseguiu fazê-lo. Persistem dificuldades na formação de profissionais, no financiamento adequado e na universalização de serviços de qualidade.

Destaco esses números porque eles compõem um quadro maior (e igualmente grave) de descumprimento das metas e estratégias inscritas no Plano Nacional de Educação que se encerra no final deste ano, à vista da prorrogação de sua vigência decorrente do atraso no debate e na aprovação do novo planejamento decenal.

Das 20 metas que buscavam projetar o futuro educacional para o Brasil, apenas 4 foram cumpridas, parcial ou integralmente. É muito pouco para um país que pretende abandonar o atraso e se libertar da armadilha da renda média. Que haja aderência ao PNE na aplicação dos recursos vinculados à educação, como manda o (ainda vigente) art. 10 da Lei nº 13.005/2014, é apenas o começo de uma sinuosa trajetória que envolve outras tantas providências essenciais voltadas à política educacional.

Então, se o retrato atual revela fragilidades graves – e até um tanto embaraçosas para gestores e controladores públicos –, é certo que ele também denota os desafios a serem enfrentados e, assim, apresenta oportunidades para pensar soluções. Não aquelas fáceis que se dispõem a resolver os problemas complexos e, por isso mesmo, são erradas. Mas as que impõem tanta dificuldade de realização quanto coragem para a sua implementação.

Nesse exercício de observação de que falava Maria Zambrano, devemos reconhecer, pois, que temos uma “dívida com o futuro”. Um débito intergeracional que, se não solvido, condenará os adultos de amanhã à resignação diante da ignorância, da desigualdade, da imobilidade e do retrocesso social.

Não basta, para tanto, reduzir a complexidade do problema ao impasse entre investimento e gestão. Existem problemas de recursos e de gestão. Não são questões excludentes e ambas coexistem na educação pública brasileira. Investimos somente 1/3 do que os países da OCDE aplicam para cada aluno e temos, sim, problemas de ineficiência naquilo que é investido.

A fim de buscar alternativas que sejam aptas a oferecer caminhos de superação, deve-se voltar o olhar para as evidências acerca do que realmente funciona país afora.

Primeiro, uma gestão educacional proativa e de proximidade, em que as secretarias de educação das redes atuem de forma constante, com suporte técnico e pedagógico direto às escolas, realizando visitas periódicas, acompanhando de perto os desafios e as soluções implementadas.

Esse tipo de gestão de proximidade fortalece o vínculo entre a esfera central e as unidades escolares, gerando maior alinhamento institucional.

Segundo, um monitoramento contínuo da aprendizagem, por meio da implementação de sistemas consistentes de avaliação diagnóstica e formativa, com ciclos regulares de coleta e análise de dados de desempenho dos alunos, permitindo intervenções tempestivas para solução de defasagens.

Terceiro, a formação continuada de alta qualidade e acompanhada, de modo que as ações formativas sejam planejadas de maneira sistemática e articuladas com as necessidades diagnosticadas nas avaliações. Nas redes de excelência, há uma cultura institucional que valoriza o desenvolvimento profissional contínuo, rompendo com modelos pontuais e descolados da prática docente.

Quarto, uma cultura de observação de aulas com devolutivas construtivas, em que a observação sistemática das aulas, seguida de feedback estruturado, torna-se um instrumento essencial de desenvolvimento profissional. Tal medida, muitas vezes negligenciada em redes com desempenho inferior, é elemento comum nas redes de destaque, contribuindo diretamente para o aprimoramento da prática docente.

Por fim, o uso de tecnologias para gestão e aprendizagem, mediante a incorporação de plataformas tecnológicas para acompanhamento do desempenho escolar, controle de frequência, análise de indicadores e até uso de plataformas digitais de apoio ao ensino, especialmente em matemática e língua portuguesa.

Nada que se possa tomar como milagroso. Pelo contrário, aí estão práticas enraizadas no território, construídas a partir da escuta, do protagonismo das equipes locais e de uma governança educacional comprometida.

A cobrança cada vez mais intensa para que os governos fundamentem a sua atuação em evidências vai além do preciosismo científico, mas procura cobrir a carência de políticas que olhem para além dos limites territoriais e ideológicos, buscando incorporar modelos que deram certo.

A mudança requer, portanto, não só uma visão pragmática sobre “o quê” implementar, mirando naquilo que realmente produz resultados, mas também uma perspectiva de longo prazo sobre “como” fazê-lo, que transcenda ciclos eleitorais, evitando descontinuidade a cada nova gestão.

Somos constantemente atravessados por inovações que se sobrepõem, plataformas que nos envolvem numa avalanche de informações. A cultura da imagem rápida e do conteúdo descartável tem ajudado a construir uma paisagem repleta de ruídos que nos despojam da nossa atenção.

“Temos nos cercado de coisas, e temos ficado vazios”, é uma frase que ganha sentido diante dessa realidade. Mas não por isso deva se converter numa profecia autorrealizável. É frente a esse contexto que a educação reafirma o seu papel, que pode ser fortalecido por meio de estratégias bem-sucedidas, fundamentadas na (1) gestão para resultados com foco na aprendizagem; (2) gestão participativa e no (3) desenvolvimento profissional contínuo e sustentado.

Não deixemos que se acumulem os juros caríssimos dessa dívida com o futuro, tornando-a impagável.

 

 

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