O vício do espetáculo: a CPI entre o prejuízo social e o lucro eleitoral
Na teoria, uma ferramenta robusta, um braço forte da sociedade dentro do Congresso, amparado pela Constituição. Concede poderes de investigação que fazem inveja a muitos magistrados, porque o apelo popular por justiça aparece em tempo real. Representa a ação proativa do legislativo para sanear desvios, tanto na administração pública quanto no setor privado. Mas quanto deste poder atípico tem sido aproveitado na prática?
O problema das CPIs jamais esteve na sua potência, ela é indiscutível. O estrago reside na perda de rumo, no desvio de propósito. O que se ergue, muitas vezes, é um palanque, onde a busca por holofotes e o lucro eleitoral individual se sobrepõem ao prejuízo social, à impunidade que teima em persistir e à diminuição da confiança nas instituições, que há tempos está abalada. É a indignação pelo dinheiro público que ganhou endereço errado. A esperança na condenação dos responsáveis que vai embora junto com relatórios apáticos.
O poder de uma CPI é inquestionável: quebra de sigilos bancários e telefônicos, requisição de informações confidenciais, convocação coercitiva, quando aprovados pela maioria dos membros. Tais ferramentas, mesmo provisórias, exigem um senso de imparcialidade, difícil de atingir, quando se está ali para, de alguma forma, lucrar politicamente. É necessário a isenção, ainda que idealizada, esperada de um magistrado.
Poderia ser uma coleta isenta de provas para os órgãos de controle e fiscalização, porém este instrumento se torna, com frequência, um fuzilamento seletivo. O objetivo, na maioria das vezes, deixa de ser a busca da investigação em si e passa a ser a manchete, o recorte viral, o meme bombástico desenhado no ventre da comissão. Marketing puro, calculado.
O prejuízo social se espalha pela sociedade, que já não deposita tanta credibilidade no Congresso. É o tempo legislativo, que poderia ser investido em reformas estruturais, simplesmente desperdiçado. É o erário consumido sem contrapartida prática. E, o mais grave, é a falta de eficiência em promover mudanças duradouras, enquanto quem está na rua clama por um futuro diferente. A comissão vira um ringue político. A apuração imparcial é substituída pela exposição do adversário partidário, na busca incessante em atrelá-lo, por um fio de cabelo que seja, ao fato investigado.
Quando a parcialidade é notória, o rito se contamina. O devido processo legal, um dos pilares inegociáveis da justiça, é solenemente ignorado, abrindo espaço para o questionamento e, em muitos casos, a anulação de provas. Não se pode esquecer que a integridade processual é tão inegociável quanto a do investigado.
A contradição é a seguinte: o instrumento criado pela Constituição para combater o crime e a corrupção se torna, por seu uso partidarizado, o garante indireto da impunidade. O investigado, vejam só, passa a torcer pelos erros procedimentais da comissão para montar uma defesa baseada no cerceamento, nos casos (excepcionais) que apresentam eventual tentativa de punição. Uma ironia amarga.
Ao analisar as CPIs mais recentes, aquelas de apelo popular e cifras astronômicas, surge a pergunta que não quer calar: quanto do tempo de trabalho foi dedicado à investigação séria, à elaboração de propostas de regulamentação que realmente combateriam o mal pela raiz e quanto se concentrou na exposição sensacionalista? A frustração se repete. O problema de fundo permanece ali, intocado por qualquer reforma após meses de trabalho, milhares de custos e horas de depoimentos.
Nas comissões que tratam temas de alto impacto social, como a influência predatória dos jogos de apostas online no orçamento das famílias brasileiras, o desvio adquire uma dimensão ainda pior. O custo se mede na ausência de resposta do Congresso, distraído pelo teatro, e na incapacidade da comissão de ir além da denúncia pontual para propor mudanças sistêmicas. Perde-se a chance de aproveitar a visibilidade e entregar um trabalho de fôlego, um marco duradouro… E a solução, mais uma vez, é postergada para um futuro incerto.
Porém, o maior custo social é a descrença. A diminuição lenta e gradual da confiança democrática, que já anda tão abalada. O ciclo é conhecido como o calendário: holofotes na instalação, promessas, convidados de peso, muito barulho e, na maioria das vezes, relatórios que terminam engavetados ou simplesmente desmoralizados. O dinheiro público vai para o ralo, o tempo legislativo é roubado e a convicção de que a corrupção jamais será punida se fortalece, esfarelando a credibilidade das instituições de fiscalização.
Entretanto, o Congresso tem, neste exato momento, uma chance histórica. A comissão mista que investiga a maior fraude contra a Seguridade Social das últimas décadas. Um caso que, por sua dimensão e pelo impacto direto na vida de milhões de aposentados e pensionistas, clama por um desfecho diferente do ciclo vicioso de espetáculo e esquecimento. É o momento de o Legislativo provar que o poder de investigar pode, sim, ser usado com rigor técnico e isenção, transformando a indignação popular em justiça e o desvio em reparação institucional. A sociedade, aguarda sem muitas expectativas que o foco, desta vez, seja a punição e não a projeção para o próximo palanque.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica.