Justiça anula multa do Ibama e aplica perspectiva de gênero em caso ambiental
Carla Nigro, especial para o Blog – A Justiça Federal do Espírito Santo anulou uma multa aplicada pelo Ibama a uma mulher acusada de manter aves silvestres em cativeiro. A defesa alegou que os animais pertenciam ao ex-companheiro e o magistrado aplicou a perspectiva de gênero – protocolo obrigatório no Judiciário desde 2023 – para reconhecer a vulnerabilidade da autora e anular a penalidade. O caso foi julgado pelo juiz federal Rodrigo Reiff Botelho.
A mulher entrou com o processo contra o Ibama na 2.ª Vara de Execução Fiscal de Vitória. Ela foi multada pelo órgão em R$ 3.500 por manter em cativeiro, sem autorização, permissão ou licença, sete espécies da fauna silvestre nativa: cinco coleiros papa-capim, um tiziu e um bombeirinho. Na ação, ela relatou que só descobriu a multa ao tentar se inscrever em um curso para vigilante e descobrir que estava em dívida com o Ibama.

A infração ambiental ocorreu em 2012, mas, em 2025, quando a audiência foi realizada, o valor da multa havia sido atualizado para R$ 7.874, devido à correção monetária e juros.
A autora alegou, em sua defesa, que os pássaros eram do ex-marido, com quem mantinha união estável na época, e que o Ibama não podia responsabilizá-la somente por residir no endereço. Segundo ela, o agente de fiscalização deveria ter apurado quem era o real autor da conduta ilícita. Também questionou o valor da multa diante de sua situação econômica, pleiteando a redução ou conversão da penalidade em prestação de serviços.
Em seu depoimento, disse ainda que se separou do marido porque, mesmo após outras apreensões, ele insistia em continuar criando os animais. Informou que não cuidava dos pássaros e que havia ameaçado soltá-los, mas o marido disse que “não podia fazer isso”.
O Ibama contestou, alegando que os fatos eram “incontroversos”, uma vez que a autora manteve os pássaros em cativeiro e, em nenhum momento, negou a posse. Alegou ainda que bastava a posse para configurar a infração. Destacou também que a casa onde os pássaros foram encontrados estava alugada pela autora.
A sentença
Na sentença, o juiz decidiu em favor da autora, anulando a multa e a execução fiscal. Além de condenar o Ibama a pagar honorários advocatícios. Com base nas testemunhas arroladas, o juiz considerou provado que os pássaros pertenciam ao ex-companheiro da autora da ação. O homem tinha como ‘hobby’ manter os animais em cativeiro.
“Ela, na condição de companheira, embora não concordasse com a manutenção dos animais silvestres em sua casa, não possuía condições de se desfazer dos mesmos, seja por meio de denúncia ao Ibama, ou mediante a liberação dos pássaros das gaiolas”, destacou.
O magistrado ressaltou que ao menos duas testemunhas afirmaram que o ex-marido se utilizava de tom ameaçador quando a autora fazia menção em libertar os animais, e que a manutenção dos pássaros na residência foi objeto de diversas discussões entre o casal.
Um argumento usado pelo juiz é a necessidade de se considerar a perspectiva de gênero tanto na hora da fiscalização quanto durante o processo.
“Nem sempre a mulher, em um relacionamento, encontra-se em situação fática que lhe permita confrontar o marido acerca de um ilícito sem temer prejuízos à sua segurança física e/ou financeira.”
O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero foi elaborado em 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2023, a Recomendação CNJ n.128 orientou todos os tribunais do país a adotar o documento como referência.
No mesmo ano, a Resolução CNJ n.492 tornou obrigatória a incorporação dessa perspectiva nos julgamentos. A norma implica a análise de cada caso considerando como papéis sociais de gênero, estereótipos e desigualdades estruturais afetam as partes envolvidas e o próprio resultado da decisão judicial.
Especialista em direito ambiental, Angelina Balarinie explica que esse protocolo se aplica, principalmente, quando houver risco de responsabilização indevida e quando a prova se basear em presunções.
“Quando a multa é aplicada, tem que ter uma motivação e uma prova. Eles não provaram, simplesmente fizeram a presunção de que, como ela estava em casa no momento da autuação, era a responsável, ou seja, era quem estava cometendo o crime.”
Segundo Angelina, a autora conseguiu provar no processo que era “a parte frágil da situação” e, por isso, o juiz aplicou a perspectiva de gênero.
Ainda há um caminho a percorrer
Embora a resolução tenha sido aprovada em 2023 e já seja possível encontrar vários casos em que juízes a aplicam, ainda há um longo caminho a percorrer nessa área. Para Layla Freitas, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB do Espírito Santo, há “ilhas de excelência”, ou seja, juízes e juízas comprometidos em julgar com essa leitura crítica.
Mas o padrão majoritário ainda é o da neutralidade aparente, que perpetua desigualdades sob o discurso da “imparcialidade técnica”.
“A Resolução 492 foi um marco importante, mas sua implementação ainda é incipiente. O protocolo, justamente, se tornou obrigatório porque, antes, enquanto recomendação, não recebeu a devida atenção dos juízos. No dia a dia, ainda observamos uma assimetria entre o que está normativamente previsto e o que de fato é aplicado.”
Layla Freitas ressalta que, em muitos tribunais, a perspectiva de gênero aparece somente nos casos de violência doméstica, quando deveria atravessar todas as áreas do direito: penal, cível, ambiental, administrativo, empresarial e até tributário.
“No campo ambiental, a aplicação é igualmente necessária: mulheres, especialmente em comunidades tradicionais e rurais, são as primeiras a sentir os efeitos da degradação ambiental, da escassez hídrica e da perda de biodiversidade – porque são elas, em geral, as responsáveis pelo sustento doméstico, pelo cuidado e pela produção alimentar local.”
Para ela, não se trata de impor uma agenda ideológica, mas de reconstruir o direito a partir de sua função social e constitucional.
“Não se trata de ‘favorecimento’, mas de corrigir distorções históricas que têm colocado as mulheres, sobretudo as mulheres negras, periféricas, trans e em situação de pobreza, em posições de vulnerabilidade institucionalizada”, acentua Layla Freitas.