Prescrição em xeque
A decisão liminar proferida pelo ministro Alexandre de Moraes na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.236/DF, que suspendeu a eficácia de um trecho do § 5º do art. 23 da Lei 8.429/1992 — incluído pela reforma da Lei de Improbidade Administrativa promovida pela Lei 14.230/2021 — pode ser visto como exemplo do que o professor Rubens Glezer chama de “catimba constitucional”. O trecho suspenso estabelecia a aplicação da chamada prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa, fixando um prazo de quatro anos para a sua ocorrência após a última causa interruptiva. A justificativa apresentada pelo Supremo foi que sua vigência causaria a prescrição de milhares de ações em curso, gerando, assim, risco de impunidade e lesão à moralidade administrativa.
Entretanto, essa fundamentação, ainda que revestida de um verniz protetivo, parece se apoiar mais em um temor político-moral do que em argumentos jurídico-constitucionais objetivos. A mera constatação de que a aplicação da nova norma trará consequências práticas indesejadas ao Ministério Público ou ao aparato de responsabilização estatal não transforma a norma em inconstitucional. O controle de constitucionalidade, por sua própria natureza, exige rigor analítico, fundamentação sólida e respeito aos parâmetros estabelecidos pela Constituição. Não se trata de um espaço para manifestar descontentamento institucional com escolhas do legislador, mas sim de verificar, de maneira técnica e isenta, se a norma impugnada viola preceitos constitucionais.
A função da prescrição no ordenamento jurídico não é enfraquecer o combate à improbidade, mas sim assegurar garantias fundamentais como a segurança jurídica, a duração razoável do processo, a previsibilidade e a estabilização das relações jurídicas. O Estado não pode manter indefinidamente o poder de punir, sob pena de transformar-se em um agente arbitrário, insensível à deterioração probatória do tempo e aos limites institucionais da responsabilização. A prescrição intercorrente, em especial, surge como resposta à morosidade da máquina pública e do próprio Poder Judiciário. Ela não pune o réu, mas sim a inércia injustificada do autor da ação ou a ineficiência processual do Estado. Trata-se de um instituto que exige que o processo avance dentro de parâmetros temporais razoáveis, evitando que o réu fique indefinidamente submetido a uma ação sem conclusão.
É precisamente nesse contexto que se insere a reforma da Lei de Improbidade Administrativa de 2021. A Lei 14.230 buscou atualizar e tornar mais objetiva a responsabilização por atos de improbidade, exigindo dolo específico, afastando a modalidade culposa e introduzindo regras mais claras de prescrição. Entre essas inovações, inseriu-se o § 5º do art. 23, estabelecendo que, após o curso da causa interruptiva, a prescrição intercorrente corre por prazo de quatro anos, não se confundindo com a prescrição inicial, que permanece sendo de oito.
O Supremo, ao suspender a eficácia do dispositivo com base em alegações de risco de prescrição em massa e de prejuízo à proteção da moralidade administrativa. A decisão, por um lado, parte de uma visão consequencialista – muitos processos em curso prescreveriam – e, de outro, apela a um princípio de forma abstrata: a moralidade administrativa.
De acordo com a decisão, o prazo não é razoável, e cada instância deveria ter até 8 anos para julgar. Ora, o período de 4 anos previsto para prescrição intercorrente é o mesmo período de uma legislatura. Um deputado ou vereador tem esse período para exercício de seu mandato, um prefeito ou governador tem esse prazo para chefiar o Poder Executivo de um ente da federação, mas não é tempo suficiente para, por exemplo, um Tribunal analisar um caso?
A referência a mais de 8 mil ações que poderiam prescrever com a nova regra foi usada como uma das justificativa para suspender sua aplicação. É certo que a mudança promovida pelo Legislativo – frisa-se que em 2021, a lei alterou a dinâmica processual estabelecida nas ações de improbidade. No entanto, não incorreu a legislação em qualquer inconstitucionalidade.
Cabe ainda lembrar que o próprio STF, no julgamento do Tema 1.199, firmou a tese de que as alterações da Lei 14.230/2021 são irretroativas, não alcançando atos anteriores à sua vigência. Qual o sentido de, após 4 anos de vigência, suspender a eficácia de um dispositivo em razão da iminente prescrição de milhares de ações?
A decisão que suspende a prescrição intercorrente é sintomática de um modelo de judicialização excessiva das escolhas políticas. Ao invés de se limitar a verificar a compatibilidade da lei com a Constituição, o STF atuou como instância revisora do mérito legislativo. O controle de constitucionalidade deve acontecer a partir de pilares claros, não de projeções ou temores.
É legítima a discordância com o mérito da proposta legislativa ou da legislação vigente. Contudo, discordar da opção legislativa não pode ser equivalente a declará-la inconstitucional.