26 de outubro de 2025
Politica

‘Tem que ter coragem de vencer o medo’, diz advogado que ajudou a derrubar ‘suicídio’ de Herzog

O Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de inteligência do regime militar, descreveu José Carlos Dias como “advogado militante defensor de subversivos”. O criminalista atuou em 500 processos de presos e perseguidos políticos da ditadura. Poucos colegas tiveram a mesma coragem e disposição para desafiar a ordem jurídica do período de exceção. Aos 86 anos, e hoje aposentado da advocacia, ele continua a militar pelos direitos humanos, mas agora na Comissão Arns, organização da sociedade civil criada em reação ao governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

“Com essa idade, eu imaginava apenas recordar, mas infelizmente tem muita coisa para fazer”, afirma em entrevista ao Estadão.

José Carlos Dias recebeu a reportagem em sua casa, na Consolação, região central da capital paulista, para falar sobre os 50 anos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, torturado e morto no DOI-Codi em outubro de 1975. O advogado ajudou a desmontar a versão de suicídio plantada pelos militares.

Um dos clientes de José Carlos foi o jornalista Rodolfo Konder (1938-2014), que esteve com Vladimir Herzog nos porões da ditadura. Além de colegas de profissão, os dois eram amigos. Foi o advogado quem orientou o jornalista a contar tudo o que sabia sobre o crime antes de partir para o exílio. Konder narrou que ouviu os gritos de Vlado até cessarem.

José Carlos tomou o depoimento na frente de um padre, que guardou uma cópia do documento no sacrário da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Depois tornou o relato público na Justiça Militar, na presença de agentes do DOI-Codi.

“Esse depoimento foi uma peça importantíssima porque descreveu os momentos finais do Vlado”, relembra.

“Não foi nada de enforcamento. Foi torturado e morreu na tortura. A minha impressão é que foi um ‘acidente de trabalho’. Quer dizer, ele provavelmente estava sendo torturado na cadeira do dragão e morreu. Eu não acredito que eles tenham levado para matá-lo. Mas isto é uma conjectura que eu faço.”

José Carlos Dias:
José Carlos Dias: “A gente pode ter medo, mas tem que ter coragem de vencer o medo”.

O advogado esteve, ele próprio, nas mãos dos militares. Foi preso em três ocasiões durante a ditadura. Em uma delas, foi conduzido sob a mira de um revólver e ficou detido na companhia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em todas as vezes, foi liberado rapidamente depois de prestar depoimento.

Passada a ditadura, José Carlos Dias coordenou os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Tomou depoimentos de oficiais graduados das Forças Armadas, como o coronel Carlos Brilhante Ustra, e conseguiu uma confissão, do coronel Paulo Malhães, assassinado pouco tempo depois.

As Forças Armadas não colaboraram com os trabalhos da comissão. Se recusaram a abrir seus arquivos.

“Nós queríamos abertura de todos os arquivos. Tivemos uma reunião com a presidente Dilma e ela disse: ‘Mas eu não posso exigir que eles deem os arquivos’. Ela podia exigir sim, como comandante e chefe das Forças Armadas. Ela estava em campanha eleitoral e não quis se comprometer. Essa é a verdade”, avalia o advogado.

Para o criminalista, o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria revogar a Lei da Anistia, mesmo já tendo julgado constitucional o perdão aos militares, em 2010. O advogado considera que o STF está conduzindo “muito bem” os processos da trama golpista.

“Só o Fux que deu aquele voto lamentável. Mas eu acho que os outros votos foram muito bons. Foi uma decisão importante do Supremo”, pondera.

Na avaliação do advogado, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, “se excedeu em alguns momentos, mas no todo está agindo muito bem”. “É um homem sério, correto, firme.”

Leia a entrevista completa com José Carlos Dias:

O que o motivou a defender tantos presos políticos?

Eu me formei em Direito para ser advogado criminal. E eu comecei a defender presos comuns. Logo depois veio o golpe e eu fui procurado para defender o José Mentor. Eu o defendi. Aí começaram a aparecer clientes. E fui defendendo vários presos e perseguidos políticos. Dei assistência a 500.

Por que aceitar esses casos?

Poucos advogados atuaram nisso. Eu diria que uns 10 ou 12. Acho que por medo. Eu não tive nenhuma razão para não aceitar. A maior parte dos advogados que atuavam era ligada ao Partido Comunista. Eu nunca fui. Eu garantia ao cliente o direito de ele dizer o que ele queria dizer, mas não me não me equiparava às posições políticas deles. Fazia defesas técnicas.

Não teve medo?

A gente pode ter medo, mas tem que ter coragem de vencer o medo. Essa é a minha posição.

Algum caso o marcou?

A morte da Heleny Ferreira Telles Guariba. O procurador da Justiça Militar Durval Aírton Moura Araújo me avisou que havia pedido novamente a prisão preventiva dela. Pedi que a Heleny me encontrasse na frente da minha casa. Os agentes do DOI-Codi estavam na rua. Logo identifiquei a Veraneio. Quando ela chegou, a abracei e falei: “Os homens estão olhando. Acaba de ser pedida a sua prisão preventiva”. Ela disse que ia fugir. Pedi que desse notícias a cada três dias. Mas ela desapareceu. Até que eu vim saber que ela tinha sido presa e morta em Petrópolis. Para mim foi terrível porque eu fui instrumento para que ela pudesse vir a ser morta. Eu fui traído pelo Durval. E isso é uma coisa que me machuca muito. É o fato mais doloroso da minha vida profissional.

Como era o trabalho de um advogado que defendia presos políticos nessa época? Era possível ter alguma vitória?

Um dos meus clientes, Celso Antônio, tinha sido condenado a 30 anos. A pena foi reduzida a 15 anos no Superior Tribunal Militar. Eu recorri ao Supremo. O relator era o ministro José Geraldo Alckmin, tio do atual vice-presidente. Eu aleguei que ele havia sido torturado e que a prova produzida não podia ser aceita. Depois que eu fiz a sustentação oral, o ministro falou: “Eu quero dizer, antes de mais nada, que o advogado se exaltou muito e fez críticas ao Exército. E nisso eu não concordo. Não se pode atacar assim o Exército brasileiro. Mas eu concordo com uma coisa: a prova produzida não presta. E, sendo assim, eu anulo a condenação e absolvo.” E, de 30 anos, ele saiu absolvido do Supremo. Essa foi uma experiência emocionante. Lembro que saí do julgamento emocionado pela vitória que tinha conseguido.

Como o sr. ajudou a descredibilizar a versão oficial de suicídio?

O Rodolfo Konder era muito ligado ao Herzog. Eram muito amigos. O Rodolfo me procurou para fazer a defesa dele e eu o orientei a contar tudo o que ele sabia a respeito da morte do Vlado. Numa sexta-feira eu fechei a porta do escritório, ninguém mais entrou, e durante quatro horas o Rodolfo Konder prestou depoimento. Estávamos eu, meus colegas de escritório, o jornalista Prudente de Morais Neto, o padre Caetano Zolin e o jurista Hélio Pereira Bicudo. Foi um depoimento impressionante. O padre guardou uma cópia no sacrário da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro para entregar a Dom Paulo. Eu usei o depoimento no processo contra o Konder, que era o mesmo processo contra o Vlado. Li o depoimento inteiro na Justiça Militar, na presença de agentes do DOI-Codi. O juiz auditor me chamou e falou assim: “Doutor, eu vou dizer uma coisa em particular ao senhor. É para o seu bem. Ao sair daqui, o senhor vá com os seus colegas com muito cuidado porque tem muita gente aqui que pode prejudicá-lo”. Esse depoimento foi uma peça importantíssima porque descreveu os momentos finais do Vlado.

O que ele dizia?

Os dois estavam sentados lado a lado, mas de capuz. Rodolfo reconheceu o sapato de Vlado, que tinham comprado juntos, e eles se falaram rapidamente. Aí levaram o Vlado para dentro. Ele começou a ouvir os gritos. De repente, os gritos pararam e ele percebeu uma correria. Quer dizer, Vlado tinha morrido na tortura. Essa foi uma prova concreta. Não foi nada de enforcamento. Foi torturado e morreu na tortura. A minha impressão é que foi um “acidente de trabalho”. Quer dizer, ele provavelmente estava sendo torturado na cadeira do dragão e morreu. Eu não acredito que eles tenham levado para matá-lo. Mas isto é uma conjectura que eu faço.

Advogado afirma que morte de Vlado parece ter sido 'acidente de trabalho':
Advogado afirma que morte de Vlado parece ter sido ‘acidente de trabalho’: “Não acredito que eles tenham levado para matá-lo”.

E o sr., como soube da morte de Vlado?

O Audálio Dantas, que era presidente do Sindicato dos Jornalistas, me telefonou de madrugada. No dia seguinte, fui procurar a Clarice e dei a assistência que eu poderia dar. Ela tinha que prestar o depoimento no quartel, eu fui acompanhá-la. Não me deixaram entrar. Ela entrou sozinha e prestou depoimento. Depois, eu orientei que a família entrasse com uma ação contra a União e indiquei os advogados. Eu não atuei porque o inquérito criminal foi arquivado. E foi então que eu sugeri a ação civil.

Por que considera que a morte dele teve uma repercussão tão grande?

Ele era um jornalista de renome, tinha uma posição importante na TV Cultura. Era um homem de esquerda, mas nunca soube que fosse comunista.

O sr. também foi preso na ditadura. Pode relembrar como foram essas prisões?

Fui preso três vezes. A primeira foi na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Eu estava me formando e fiz um discurso no Lago São Francisco. Depois fui com alguns colegas até a Praça da Sé e nós começamos a ridicularizar a marcha. Fui preso e levado para um ônibus. Me deixaram lá com os outros. Começaram a chegar batedores de carteira. Aí eu falei para o delegado: “Doutor, não está certo. O senhor está misturando preso comum com preso político. Isso não é possível”. Aí ele me liberou. “Ô moleque, vai embora que você está me enchendo o saco”. E me soltou. Essa foi minha primeira prisão. Foi muito curta.

Na segunda vez eu estava no escritório. Chegaram uns policiais que me conduziram para prestar esclarecimentos. Eu falei para minha secretária ligar para o presidente da OAB e avisar que eu estava sendo preso. Entrei na Veraneio [carro usado pelos militares] e vi minha ficha. Dizia assim: “Conduzir, se possível, gentilmente”. Quando cheguei, trouxeram um rapaz, um trotskista, que tinha sido preso e tinha um cartão meu. Me liberaram logo.

Da terceira vez era sábado. Na noite anterior eu tinha estado na casa do Lula com o Frei Beto. As greves do ABC estavam no auge. De manhã, eu recebo a notícia de que o Dalmo Dallari e o Lula tinham sido presos. Dalmo era meu companheiro na Comissão de Justiça e Paz, tinha sido presidente antes de mim. Eu fui para o escritório escrever um habeas corpus. Quando cheguei na Praça Panamericana, meu carro foi fechado. Me mandaram sair e colocar as mãos em cima do carro. Eu já tinha prevenido a minha mulher que, se não telefonasse em meia hora, é porque eu tinha sido preso. Eu fui guiando sob a mira de um revólver. No Dops vi várias pessoas presas. Fiquei nervoso porque entre elas tinham vários clientes meus. Não tem coisa pior do que ver um cliente ser preso e não saber o que vai acontecer. Me levaram até a sala do delegado, eu fiquei sentado junto com o Lula. Pedi que trouxessem também o Dalmo (jurista Dalmo de Abreu Dallari). Aí chega o Ailton Soares [advogado]. Ele começa a falar. Quando termina, fala assim: “Ô, Zé Carlos, conversa está boa, mas vamos embora porque hoje é dia de trabalhar”. O Lula interveio: “Ô Ailton, porra, não vê que o cara tá em cana”. Aí chega o Mário Sérgio Duarte Garcia, que era o presidente da Ordem. Os militares disseram para ele ir embora que os advogados seriam ouvidos e liberados. Ele se recusou. “Não vou porque também me considero preso”. E lá ficamos. Tomaram os depoimentos e nós fomos liberados. O Lula permaneceu. Ficou lá um mês. Essa foi minha terceira e última prisão. Espero que não tenha mais.

O sr. participou da Comissão Nacional da Verdade. Apesar das tentativas da comissão, as Forças Armadas se recusaram a abrir os arquivos da ditadura. Como foi essa negociação e a recusa dos militares?

A participação na Comissão Nacional da Verdade marcou a minha vida. Foi um trabalho exaustivo. Durante dois anos e meio atuamos de uma forma intensa. Nós queríamos abertura de todos os arquivos. Tivemos uma reunião com a presidente Dilma e ela disse: “Mas eu não posso exigir que eles deem os arquivos”. Ela podia exigir sim, como comandante em chefe das Forças Armadas. Ela estava em campanha eleitoral e não quis se comprometer. Essa é a verdade. Em contrapartida, conseguimos informações da CIA. Essas informações vieram. A CIA reconhecia que todos os atos de violência e de mortes eram atos de governo, eram os próprios presidentes que determinavam ou autorizavam esses atos. Isso faz parte do nosso relatório e veio confirmado pela CIA. É terrível. Até mesmo o Geisel, que foi o mais benevolente, o menos violento de todos, participou. Isso mostra o que foi a ditadura brasileira. A nossa ditadura não matou como mataram na Argentina e no Chile, em quantidade, mas em termos de violência pode se equiparar sim.

A Comissão Nacional da Verdade demorou muito para ser instalada. Na nossa posse, eu fiz o discurso a pedido da Dilma. Nós fomos aplaudidos e os militares ficaram com as mãos fechadas para não nos aplaudir. Naquele momento nós tínhamos a ilusão de poder realizar muito mais do que realizamos. Ainda assim foi um trabalho importante. Produziu efeitos no País todo.

Era difícil conduzir os depoimentos?

Lembro do depoimento do coronel Paulo Malhães. Eu consegui arrancar dele a confissão. Aos poucos ele foi se sentindo à vontade e começou a falar. Que cumpria ordens, que arrancou dedos. Falou do Rubens Paiva. Um mês depois ele foi morto. A partir daí todos ficaram em silêncio. Perceberam que corriam risco. Não conseguimos mais confissões. Antes disso, houve um delegado do Espírito Santo que também falou muito.

'A nossa ditadura não matou como mataram na Argentina e no Chile, em quantidade, mas em termos de violência pode se equiparar sim', diz criminalista.
‘A nossa ditadura não matou como mataram na Argentina e no Chile, em quantidade, mas em termos de violência pode se equiparar sim’, diz criminalista.

O STF deveria rever a Lei da Anistia?

Eu achava que não dava para voltar atrás, mas no decorrer do trabalho na comissão comecei a me convencer ao contrário. A revogação da Lei da Anistia consta das nossas recomendações.

O Supremo conduziu bem o processo do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos demais réus da trama golpista?

Eu acho que o Supremo conduziu muito bem. Só o Fux que deu aquele voto lamentável. Mas eu acho que os outros votos foram muito bons. Foi uma decisão importante do Supremo.

O Sr. vê excessos do ministro Alexandre de Moraes?

Eu acho que ele se excede. Mas é um homem sério, correto, firme. Me dou muito bem com ele, tenho uma relação boa com ele. Eu o respeito muito. Acho que ele se excedeu em alguns momentos, mas no todo ele está agindo muito bem.

O tamanho das penas é um desses excessos?

Acho que sim. Um dos excessos é esse. Algumas decisões, acho que exagerou. Mas no contexto geral ele atuou sempre muito bem.

Como está a rotina desde que parou de advogar?

Com essa idade, eu imaginava apenas recordar, mas infelizmente tem muita coisa para fazer.

 

 

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