13 de novembro de 2025
Politica

Emendas de comissão seguem sem transparência e consolidam poder no comando da Câmara

Criadas para apoiar políticas públicas de alcance nacional, como programas de saúde, e meio ambiente, as emendas de comissão se distanciaram de sua função original e se consolidaram como uma das principais moedas de barganha política na Câmara dos Deputados. Com execução não obrigatória, essa modalidade concentra R$ 11,5 bilhões, dos R$ 50,3 bilhões autorizados em emendas em 2025 e passou a servir para acomodar aliados por meio de repasses pulverizados em milhares de municípios. Parte das transferências segue sem identificação dos parlamentares responsáveis, em desacordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou transparência total nas emendas.

Especialistas e técnicos do orçamento ouvidos pelo Estadão afirmam que o avanço das emendas de comissão reconfigura o antigo orçamento secreto, marcado pela falta de transparência e pelo uso político dos recursos. Essa modalidade de emenda, explicam, mantém a mesma lógica de distribuição, concentrando poder no comando da Câmara e nas comissões mais estratégicas. Parlamentares, por sua vez, afirmam que parte das indicações ainda carece de transparência, o que dificulta o rastreamento de quem efetivamente direciona o dinheiro público.

Procurada para se manifestar sobre o assunto, a Câmara dos Deputados não se manifestou. O presidente da Comissão de Saúde, colegiado com o maior volume de emendas de comissão, deputado Zé Vitor (PL-MG) também foi procurado e não retornou.

Câmara dos Deputados
Câmara dos Deputados

Para o pesquisador Humberto Nunes Alencar, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), o poder político sobre as emendas de comissão decorre do próprio funcionamento interno da Câmara. Cabe ao presidente da Casa definir e indicar os comandos das comissões permanentes, responsáveis por propor esse tipo de emenda.

Na prática, cada comissão recebe uma cota de recursos para apresentar sugestões ao Orçamento, mas é o presidente da própria comissão quem decide quais programas e municípios serão contemplados, o que torna esses cargos altamente cobiçados, explica. “Como quem, de fato, precisa assinar formalmente é o presidente da comissão, o que se vê é um processo cada vez menos colegiado e mais individualizado. O presidente da Câmara usa essa estrutura para ampliar seu poder de negociação e influência nas votações”, afirma.

Esse poder se reforça também pela forma como os recursos são executados. Para o pesquisador Bruno Bondarovsky, da PUC-Rio e responsável pela plataforma Central das Emendas, a não obrigatoriedade de pagamento dessas verbas amplia o poder de barganha do comando da Câmara, permitindo premiar aliados e esvaziar as comissões controladas por grupos dissidentes. “Aqueles que são fiéis nas votações costumam ser contemplados com a liberação dos recursos, enquanto os que divergem da cúpula ou se alinham à oposição têm o dinheiro represado”, afirma.

Esse controle discricionário ajuda a explicar a concentração orçamentária em poucas comissões. Técnicos do orçamento ouvidos pelo Estadão apontam que, em 2025, as comissões de Saúde, Urbanismo, Comércio e Serviços, Desporto e Agricultura reúnem juntas cerca de R$ 7,6 bilhões autorizados, enquanto a maioria das demais, entre as 30 existentes na Câmara, segue esvaziada, como a de Meio Ambiente.

A concentração de poder e de recursos é resultado de um modelo político que sobreviveu ao fim das emendas de relator-geral do Orçamento, conhecidas como o esquema do orçamento secreto, revelado pelo Estadão. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, os autores dessas emendas ficavam sob sigilo, com acesso restrito à cúpula do Congresso. Na prática, quem votava com o comando da Casa era premiado com mais recursos, enquanto opositores tinham o dinheiro represado.

A Corte declarou a prática inconstitucional em 2022, por entender que o modelo violava o princípio da transparência e permitia o uso político de verbas públicas. Após essa decisão, as emendas de comissão foram turbinadas com valores que antes eram destinados às emendas de relator, passando a exercer também a função política de formar maiorias e consolidar apoios dentro do Congresso.

No fim de 2024, o ministro Flávio Dino chegou a determinar o bloqueio dessas emendas para a adoção de regras de transparência e rastreabilidade, entre elas, a identificação nominal dos parlamentares responsáveis pelas indicações. A decisão marcou o início de uma nova etapa de controle sobre o uso dessas verbas, mas não eliminou as brechas de opacidade, já que parte das indicações continua sem autoria clara.

A deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que integra a Comissão de Saúde, afirma que as exigências de transparência seguem sendo descumpridas na prática. “Tem umas quatro ou cinco comissões que têm muito dinheiro; outras, não. As comissões que têm dinheiro, como tudo é movido a emenda, estão diretamente vinculadas ao apoio que é dado ou não. Na verdade, continua tudo como antes: não há critério. O critério é político, baseado em apoio e trocas. Não melhorou nada. A obrigação objetiva agora é fingir que dão transparência, mas não dão”, diz.

O Estadão identificou que, na Comissão de Saúde, que possui o maior volume de recursos, há emendas registradas sem identificação nominal do parlamentar responsável, aparecendo apenas sob a designação genérica de “liderança”, em desacordo com a determinação do Supremo. Veja abaixo alguns exemplos (em azul):

Planilha da Comissão de Saúde exibe apenas a indicação de lideranças, sem apontar real autor de algumas emendas
Planilha da Comissão de Saúde exibe apenas a indicação de lideranças, sem apontar real autor de algumas emendas

Além da falta de transparência, a forma de aplicação dos recursos também reforça o uso político dessas verbas. Dados da Central das Emendas mostram que em 2024 a maior parte das emendas de comissão foi pulverizada em 4.163 municípios, com repasses médios de R$ 1,78 milhão por emenda. Parecer técnico da Câmara aponta que 59,9% do total foi destinado a despesas de custeio, como serviços urbanos e pequenas obras, e apenas 40,1% a investimentos, que são a função original desse tipo de emenda. Em 2025, quase três mil municípios já foram beneficiados, o que confirma o caráter pulverizado e local dessas transferências.

Para especialistas, esse padrão facilita a barganha política, porque permite distribuir recursos de baixo valor, mas com alto retorno eleitoral, a prefeituras de aliados e bases estratégicas. A manobra faz com que as emendas, criadas para financiar projetos de impacto regional, passem a reproduzir a lógica das emendas individuais, com recursos pulverizados e voltados a alianças locais.

“No Brasil, as emendas coletivas praticamente não existem. O que há são arranjos informais: em uma comissão, quem decide é o presidente da comissão; e, no fim, é o presidente da Câmara quem define o destino das emendas de comissão”, resume Humberto Nunes Alencar.

 

 

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