Filme ‘O agente secreto’ mantém os maniqueísmos que marcam a obra do diretor
Em toda a sua complexidade de formas e estilos, os filmes do diretor Kleber Mendonça repetem a simplicidade dos padrões de comportamento de seus personagens. Há os virtuosos, digamos, do lado do bem. Pessoas pobres, deslocadas, funcionários conscientes ou ricos idealistas, sufocados e oprimidos por um sistema maior. E os representantes desse sistema, o mal, que podem ser especuladores imobiliários, mercenários, agentes de uma ditadura, políticos, ou a elite de uma sociedade injusta, de privilégios, etc. São fábulas morais, portanto.
Entre os vilões, há os milicianos de “O som ao redor”, os matadores gringos de “Bacurau”, os especuladores imobiliários de “Aquarius”, os patrões insensíveis de “Recife Frio”. Há “mocinhos” como a rica, porém consciente e idealista Sônia Braga de “Aquarius” ou o pessoal da comunidade, de Bacurau, que se utilizava da violência, mas pelo bem, para combater o tal sistema. Com toda sua gama de influência da história cinematográfica, do Noir ao “cinema novo”, com toda sua erudição exposta, Kleber dirige filmes essencialmente políticos.

Ao longo da sua carreira, o diretor tem sido fiel à sua ideologia de integrante da classe média privilegiada, no caso de Recife, mas com forte consciência social – uma espécie de culpa burguesa. As posições clichês estão quase todas lá. O policial, por exemplo, seria essencialmente um corrupto violento. O pessoal do “sul”, como cariocas e paulistanos, um bando de arrogantes que não consegue compreender a riqueza, a criatividade das outras regiões. Os humildes representam a salvação (fora os que se venderam aos poderosos, os capitães do mato). Obviamente, a única posição política aceitável neste Brasil tirânico seria a de esquerda.
Nesse esquema que se repete, a diferença de “O agente secreto” para os demais filmes de Kleber é que será preciso um pouco mais de tempo para identificar quem é quem no tabuleiro moral. As explicações vêm aos poucos. Nesse ponto, é um filme mais sofisticado do que “Ainda estou aqui”, também com uma estrutura interna cinematográfica de fábula moral em que o bem e o mal são colocados frente a frente desde o início. É claro que o Oscar possui muitos componentes políticos, de lobbies, mas o filme de Kleber Mendonça, por essa virtude temporal, terá mais dificuldades de conseguir a estatueta do que a obra “acadêmica” de Walter Salles.
Há também algo de rocambolesco na trama de “O agente secreto” que pode prejudicar o entendimento de um espectador mais ortodoxo. Há uma miríade de referências à folclore (o caso da “perna cabeluda”, por exemplo, talvez seja de difícil compreensão para quem não conheça a cultura pernambucana), as especificidades da ultra-desigual sociedade local, as referências constantes a outros filmes de ação ou de reflexão. É algo metalinguístico.
Muitas qualidades vistas na tela são autoevidentes. Um ponto alto é a reconstituição de Recife dos anos 70. O cineteatro São Luiz, as pontes sobre o rio Capibaribe cheias de automóveis coloridos… Não há dúvida que Kleber Mendonça é daqueles artistas que transforma sua aldeia em palco de seus problemas universais. Nesse sentido, o idílico centro da capital pernambucana de meio século passado faz um forte contraste com a decadência mostrada em seu penúltimo filme “Retratos Fantasmas”.
Aliás, numa cena de poucos minutos, de uma perseguição armada no centro da capital, Kleber mostra que pode ser virtuoso se quiser filmar um dia um policial em Hollywood (contém ironia, porque o diretor afirmou que recusa as propostas dos produtores americanos). Ele já se auto vangloriou de sua virtude de se manter íntegro, fora das tentações de faturar em dólar. Mas teria grandes chances de se dar bem, como alguns colegas brasileiros.
Fica marcado também, no filme, as excelentes intepretações. Wagner Moura, que também gosta de exibir seu lado militante “progressista”, é um excelente ator, sempre. Mas Kleber retirou o máximo de todo mundo que apareceu. Até quem fez pequenas pontas tem participações marcantes. Um exemplo: o frentista barbudo e obeso das primeiras cenas do filme. São muitos que irão demorar a serem esquecidos.
PS: no parágrafo a seguir há um spoiler, então pode parar por aqui.
Uma questão que também pode prejudicar na conquista do Oscar é que “O agente secreto” não é uma obra de redenção, como “Ainda estou aqui”. No caso do filme de Walter Salles, a volta por cima da protagonista Eunice Paiva (Fernanda Torres/Fernanda Montenegro) coloca o filme numa categoria bastante prestigiada pelos votantes do Oscar. Haveria um grande sentido por trás de tudo. No filme de Kleber há algo da inutilidade de todos os esforços honestos. No final das contas, quem enfrenta o “mal” será barbaramente punido. A saída para sobreviver seria se retrair ou se acomodar. Digamos, então, que houve uma inflexão filosófica pessimista de “O agente secreto” em relação a “Bacurau”.
