O filho perdido
Meu único filho morreu em dezembro de 2017. Tinha 39 anos e vivemos separados durante metade desse tempo. Não foi fácil manter distância, acompanhando de longe as ilegalidades, as prisões, o envolvimento com drogas. Não foi fácil manter distância, mas foi o único caminho que me restou depois, que já adulto, foi diagnosticado com traços de psicopatia; um jovem de personalidade violenta, sem empatia, sem afetividade, sem noção de certo e errado, sempre pronto a explodir – meu filho. Coração apertado, segui à risca o conselho dos médicos: pare de correr atrás dele, contratando advogados, pagando clínicas e terapias, acertando pendências com traficantes; a única chance de seu filho mudar (e viver) é você se afastar, transformar-se em uma parede inviolável, que não cede às súplicas, às ameaças, às chantagens, uma parede na qual ele vai bater e voltar, bater e voltar. A duras penas, fui parede durante 19 anos. E sempre apostei em uma mudança que nunca aconteceu – ele continuou a desrespeitar as pessoas e seus direitos, foi preso várias vezes, mentiu, furtou, roubou.

Em 2019, dois anos depois da morte dele, li um conto de Kafka chamado “Onze Filhos”, no qual um pai descreve a personalidade de seus filhos, um a um. Não sei porque, mas no dia seguinte escrevi de um fôlego só um texto curto, de umas trinta linhas, no qual falo um pouco sobre a infância e a adolescência de meu filho, passando ao largo dos grandes problemas que enfrentei a partir de seus 15 anos. Esse conto acabou sendo o embrião de meu primeiro livro, “O Filho Perdido”, que estou lançando agora pela Geração Editorial, e funcionou, de início, como uma pequena brecha para o que ficou represado durante anos. A história não me saía da cabeça e a pequena brecha foi crescendo, incontrolável, virou um arrombamento, até que um dia comecei a juntar os cacos para escrever nossa história de mãe e filho, e tentar entender como tudo acabou tão de repente, e me deixou vazia de qualquer esperança. Não foi fácil escrever. Foi muito sofrido, arrastado: avançava, parava, recomeçava, parava outra vez. Quase como desnudar-se em praça pública.
Escrevi em primeira pessoa, como se estivesse conversando com ele, e de certa forma, estava, porque há tantos assuntos sobre os quais nunca falamos, tantas palavras nunca ditas, tantas feridas não curadas, tanto amor sufocado. Foram anos de decisões duras e difíceis, nos quais me obriguei a manter nosso afastamento como única e derradeira possibilidade de permitir a meu filho uma nova vida, digna e minimamente feliz. Não consegui e ele escreveu o final de nossa história. Alguém já me perguntou: por que publicar esse livro? Você poderia juntar seus cacos e guardar o texto numa gaveta. Demorei a encontrar a resposta, mas hoje tenho certeza de que escrevi para registrar a passagem de meu filho por esse mundo, escrevi para mostrar que ele é muito mais do que a placa com a data de nascimento e a data de morte colocada onde está enterrado. Ele existiu, teve uma infância e uma adolescência de muito amor e cuidados, e depois, escolheu seu próprio caminho de transgressões, prisões e drogas, que culminaram na nossa separação e, no fim, na sua morte.
Meu filho foi uma criança muito amada pelos tios, pelos avós, pela bisa – tinha quase três anos, quando deixei para trás Belo Horizonte e um casamento violento e infeliz para morar em São Paulo, com meus pais e irmãos. Ele reinava na casa onde era a única criança: ouvia histórias, desenhava, aprendeu com o avô a jogar bolinha de gude, a empinar pipa, a andar de bicicleta, a rodar pião. Havia sempre um dos adultos à disposição do menininho de cabelos loiros caídos na testa, que teve belas festas de aniversário, acreditou em Papai Noel, procurou ovos de Páscoa escondidos no jardim, viajou muito comigo, só nós dois, e com a família toda, nas férias de verão. Um garoto que gostava quando lhe coçavam as costas, sonhava em ser um guerreiro ninja, ganhava medalhas em campeonatos de natação, tinha preguiça de fazer lição de casa e detestava tomar banho.
Não sei se consegui ser exatamente fiel ao que vivemos, até porque houve um momento de ruptura, a partir dos 12, 13 anos de meu filho, quando as transgressões já não podiam mais ser ignoradas. Ao contrário: ficavam mais e mais graves dia após dia e eu já não conseguia guardar quase nada, já não tinha boas lembranças para guardar com carinho, pensando no futuro. Estava muito mais preocupada em descobrir como tirá-lo daquele caminho, e em esconder de parentes e amigos o que acontecia dentro da casa de meus pais e, mais tarde, dentro de minha própria casa. Escrever “O Filho Perdido” foi também um exercício de exorcizar a vergonha e de colocar para fora o que ficou escondido durante anos. Para quê? Para nada, pois a vergonha não alterou em um único milímetro o rumo das coisas. Apenas nos privou, a mim e a meus pais e irmãos, da solidariedade que, com certeza, teria vindo de parentes e amigos. E tornado a caminhada menos difícil, aliviando nossa orfandade de mãe, tios e avós de um filho, sobrinho e neto vivos.
