10 de novembro de 2025
Politica

Indefinição dos tribunais sobre preço de referência alimenta ‘guerra dos postes’

Após anos de idas e vindas nos tribunais, a Justiça ainda não consolidou um entendimento sobre a aplicação do chamado ‘preço de referência’, valor definido pela Resolução Conjunta Aneel/Anatel nº 4/2014 para o compartilhamento de postes na via pública entre distribuidoras de energia elétrica e empresas de telecomunicações. A indefinição alimenta a ‘guerra dos postes’.

Fios em postes em São Paulo; Anatel e Aneel dizem atuar no 'aprimoramento da regulamentação conjunta de compartilhamento de postes'
Fios em postes em São Paulo; Anatel e Aneel dizem atuar no ‘aprimoramento da regulamentação conjunta de compartilhamento de postes’

É o que revela um amplo estudo sobre decisões judiciais, na primeira instância e nos tribunais estaduais e superiores.

O mapeamento, ao qual o Estadão teve acesso, indica a emissão de 695 sentenças sobre o tema em um período de doze anos, entre 2014 e 2025.

A análise do teor das decisões mostra que a jurisprudência é fragmentada, ora para um lado, ora para outro, alimentando um quadro caótico e criando insegurança, principalmente entre investidores estrangeiros, segundo avaliam advogados e especialistas do setor.

“O poste é um ativo essencial para telecomunicações. Quando há decisões tão diferentes entre tribunais, as empresas perdem previsibilidade e isso afeta diretamente os investimentos em rede. Investir no Brasil se torna mais arriscado, e o resultado é uma expansão mais lenta da infraestrutura digital”, alerta Luiz Henrique da Silva, presidente executivo da Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (TelComp).

Especialmente nas varas de primeira instância predomina a ausência de uniformidade nas decisões dos magistrados – em um núcleo de 491 sentenças, 224 foram favoráveis à aplicação do preço de referência e 267 contrárias, o que revela ‘ausência de consenso e insegurança regulatória sobre a natureza obrigatória da norma’.

Já na segunda instância, prevalece um ‘movimento de correção regulatória’. As cortes estaduais têm revertido boa parte das decisões do primeiro grau, reconhecendo o poder regulatório do Estado e exigindo que as distribuidoras justifiquem preços acima do valor fixado pela Anatel e Aneel.

Em 211 acórdãos analisados, a taxa de aplicação do preço de referência aumentou mais de 20 pontos percentuais em relação à primeira instância.

O Tribunal de Justiça de Minas lidera essa consolidação pró-regulação, revertendo todas as sentenças desfavoráveis às operadoras, enquanto o TJ do Distrito Federal segue na direção oposta, com apenas 10% de aplicação da regra nas sentenças analisadas.

Acima das cortes estaduais, o tema não tem avançado para análise de mérito nos tribunais superiores. Dos 36 recursos especiais interpostos junto ao Superior Tribunal de Justiça, apenas um foi admitido, e nenhum dos sete recursos extraordinários levados ao Supremo Tribunal Federal chegou a ser conhecido.

O levantamento foi conduzido pelo escritório MMiglio & De Lucca Advogados a pedido da Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (TelComp).

O relatório aponta que o ‘bloqueio’ decorre da aplicação das Súmulas 5 e 7 do STJ, que limitam o reexame de provas e cláusulas contratuais em recurso especial.

Como as ações sobre o preço de referência envolvem justamente a análise de contratos e valores praticados entre distribuidoras e operadoras, as apelações acabam barradas antes de chegarem ao mérito, ‘o que impede o tribunal de fixar um entendimento uniforme sobre o tema’.

A falta de uniformidade, aponta o estudo, gera ‘insegurança jurídica e impacta diretamente a expansão da infraestrutura de internet no país’.

Luiz Henrique considera que a Resolução 4/2014 foi criada com o objetivo de estabelecer um valor padrão para o uso dos postes e reduzir disputas contratuais entre os dois setores, ‘evitando abusos por parte das distribuidoras que controlam a infraestrutura’.

Segundo ele, a Resolução trazia um ponto de referência e uma obrigação de agrupamento de cabos, ‘mas a verdade é que ninguém cumpriu’. “É uma situação comum no país: leis e regras são criadas e simplesmente não são respeitadas. O resultado é um cenário de desordem e insegurança jurídica”, afirma o executivo.

As empresas de energia defendem que o preço de referência seja apenas um parâmetro indicativo, e não uma imposição regulatória.

As operadoras de telecom, por sua vez, argumentam que, sem o valor de referência, ficam sujeitas a monopólios regionais e cobranças abusivas, o que compromete a concorrência e encarece o serviço ao consumidor.

“O estudo chama atenção para um tema estruturante. É preciso que as agências reguladoras atualizem as regras e conversem com o Judiciário para que o preço de referência atenda a uma política pública comum”, sugere o presidente da TelComp, ao defender a necessidade de diálogo entre Anatel, Aneel e tribunais superiores.

A pesquisa recomenda que o tema seja submetido a julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, de modo a permitir que o STJ fixe uma tese vinculante e pacifique a disputa entre as correntes pró-regulação e pró-contrato.

COM A PALAVRA, A ANATEL

O referido estudo não é do conhecimento da Agência Nacional de Telecomunicações. A Agência fiscaliza a regular prestação de serviços em parâmetros de regularidade, qualidade e diversidade de ofertas, em benefício do consumidor de telecomunicações.

No que tange aos fios de telefonia ou cabos de internet, a Legislação vigente estabelece o direito de as Prestadoras de Serviços de Telecomunicações utilizarem de forma compartilhada essa infraestrutura para o lançamento de suas redes, conforme expresso na Lei Geral de Telecomunicações, nº 9.472 de 16 de julho de 1997:

Artigo 73: as prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo terão direito à utilização de postes, dutos, condutos e servidões pertencentes ou controlados por prestadora de serviços de telecomunicações ou de outros serviços de interesse público, de forma não discriminatória e a preços e condições justos e razoáveis.

Nos termos do artigo 74 da Lei Geral de Telecomunicações, Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, a autorização para prestação de serviços não elimina a necessidade de observação da legislação distrital envolvendo a construção de infraestrutura.

Cabe às Distribuidoras de Energia Elétrica detalharem as regras de utilização dessa infraestrutura e zelar pela boa gestão e conformidade na ocupação dos postes, atividade pela qual são remuneradas pelos prestadores ocupantes, podendo ser acionadas em caso de irregularidades, sem prejuízo de eventual direito de regresso, conforme artigo 11 da Lei n. 13.116/2015.

Artigo 11: sem prejuízo de eventual direito de regresso, a responsabilidade pela conformidade técnica da infraestrutura de redes de telecomunicações será da detentora daquela infraestrutura.

Assim, compete às distribuidoras de energia elétrica, enquanto cessionárias da infraestrutura de suporte à prestação do serviço concedido, fazer a adequada gestão do uso compartilhado de postes, o que inclui o detalhamento das regras de utilização, a aprovação de projetos e a zeladoria de sua ocupação.

Por essas atividades, as distribuidoras são remuneradas por um valor devido pelas prestadoras ocupantes de postes, as quais podem ser acionadas contratualmente em caso de irregularidades.

Além disso, há previsão normativa específica que confere às distribuidoras o poder para retirar os cabos, fios, cordoalhas e/ou equipamentos, em situações emergenciais, risco de acidentes e ocupação clandestina.

De outra parte, cabe às Prestadoras de Serviços de Telecomunicações observar a legislação local, o plano de ocupação e, especialmente, a conformidade técnica com as normas de cada Distribuidora, sujeitando-se às responsabilidades decorrentes da sua conduta ou omissão, conforme as responsabilidades firmadas em contrato.

Em caso de não conformidades apuradas na conduta de qualquer um dos agentes (prestadoras de telecomunicações e distribuidoras de energia elétrica), estes estarão sujeitos às devidas responsabilidades contratuais perante a outra parte, sem prejuízo de eventuais apurações perante os respectivos órgãos reguladores (Anatel e ANEEL), podendo ainda ser acionada a Comissão de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras.

Assim, quaisquer demandas relacionadas ao cabeamento aéreo e/ou postes (aspectos estéticos/visuais e/ou distanciamento de fios, seja em relação ao solo ou em relação à rede de energia elétrica) e demais correlatos de rede externa de serviços de telecomunicações instalados compartilhando redes de distribuição de energia elétrica são de responsabilidade primária das Distribuidoras de Energia Elétrica.

A Anatel atuará nos casos de eventuais interrupções dos serviços de telecomunicações, decorrentes ou não de falhas nas redes de telecomunicações das prestadoras – rede externa, por exemplo – e que, por conseguinte, afetem a qualidade dos serviços, isto é, os indicadores previstos na regulamentação vigente.

Em caso da configuração de impasse na relação contratual entre as partes (distribuidora e prestadora), existe uma Comissão de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras composta por representantes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e dedicada à resolução administrativos de litígios entre as partes.

Por fim, diante da essencialidade da inclusão digital e da importância da infraestrutura de distribuição de energia para a ampliação do acesso e o aumento das velocidades de conexão em banda larga, Anatel e Aneel têm trabalhado no aprimoramento da regulamentação conjunta de compartilhamento de postes, com o objetivo de promover o uso justo, racional e, especialmente, seguro dessa infraestrutura para todos os interessados.

Em linha com a política pública instituída pela Portaria Interministerial MCOM/MME nº 10.563/2023, a Anatel aprovou, em outubro de 2023, sua proposta de Resolução Conjunta sobre o tema e, desde então, vinha aguardando solução dessa questão no âmbito da Aneel, pelo que recebeu com preocupação a decisão tomada em julho de 2024 pela Aneel no sentido de extinguir o processo e determinar nova instrução da matéria.

A Anatel defende que a deliberação de seu colegiado se mostra em plena conformidade também com a política pública fixada no Decreto nº 12.068, de 20 de junho de 2024.

COM A PALAVRA, A ANEEL

A reportagem do Estadão pediu manifestação da Aneel. O espaço está aberto (gabriel.gonçalves@estadao.com)

 

 

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