Correios cancela leilão de R$ 280 milhões após receber cheque sem fundo de ONG de pai de santo
BRASÍLIA – Os Correios anularam a venda de um imóvel avaliado em R$ 280 milhões em Brasília depois de receber um cheque sem fundo como pagamento. Uma ONG chamada CPM Intercab foi a única participante da licitação e arrematou o terreno, onde funcionava uma escola de gestão e um clube para funcionários da empresa.
O dirigente da entidade, sediada em Taguatinga, no Distrito Federal, é Jorge Luiz Almeida da Silveira, um líder religioso do Candomblé conhecido como Pai Jorge de Oxossi. Ele coordena um centro espírita na Ceilândia, bairro na periferia da capital federal.

Procurada, a estatal disse que o processo seguiu todas normas e está em processo anulação. Informou ainda que uma nova licitação será realizada. Pai Jorge afirmou que não sabia das irregularidades e que ainda pretende comprar o imóvel.
Em junho, a empresa pública abriu licitação para vender as instalações da Universidade Corporativa dos Correios (UNICORREIOS), que oferecia cursos de especialização e centro de convivência para os empregados, com piscinas, quadras e restaurantes. O terreno, de 212 mil metros quadrados, tem 10% de área construída e fica no Setor de Clubes Esportivos Norte, área valorizada de Brasília, a cerca de dois minutos do Iate Clube.
Devido à crise financeira da estatal, o local estava sem uso e, por isso, foi incluído na lista de bens que seriam alienados. O imóvel foi avaliado em um preço médio de R$ 322 milhões. Mas em razão da falta de concorrentes, a associação de Pai Jorge apresentou proposta mais baixa.
No mês seguinte à conclusão do certame, o processo de venda foi homologado e começou a levantar suspeitas. O então presidente dos Correios, Fabiano Silva, determinou que a área de compliance apurasse informações sobre a CPM Intercab e seu dirigente.
A conclusão do procedimento apontou, entre outros fatos, a ausência de capital social por parte da ONG e o recebimento de auxílio emergencial pelo religioso durante a pandemia da covid-19.
Apesar dos alertas, a Diretoria de Administração, que conduziu a licitação, entendeu pela regularidade do processo e opinou pela continuidade das fases seguintes. Silva, contudo, decidiu, de forma unilateral, suspender a venda até que o Conselho de Administração analisasse o caso.

Isso não chegou a ocorrer porque, em setembro, a CPM Intercab comunicou desistência e solicitou a devolução do valor que já havia sido pago. De acordo com o edital, a compradora deveria fazer aporte de R$ 500 mil à vista logo após o resultado.
Mas não é do bolso de Pai Jorge nem do caixa da sua associação que sairia a primeira parcela da operação. Um cheque de R$ 500 mil referente ao valor de entrada foi emitido em nome da empresa M Gorete F Alves Ltda. O cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ) atribuído à firma no processo é considerado inexistente, de acordo com a consulta da reportagem ao sistema da Receita Federal.
No fim de outubro, a gerência financeira dos Correios constatou que o depósito sequer chegou a ser efetuado, porque o cheque não tinha fundos. “No período compreendido entre 26/06/25 e 24/10/25, não foi identificado qualquer outro crédito oriundo da empresa M GORETE F ALVES LTDA (CNPJ 04.601.058/0001-04), emissora do cheque devolvido”, diz ofício enviado à Diretoria Executiva dos Correios. Com isso, o resultado da licitação foi anulado.
O número de registro da suposta empresa é quase idêntico ao de uma outra empresa, a MG Incorporadora de Imóveis Ltda, cuja dona é Maria Gorete Ferreira Alves. Procurado, Pai Jorge disse ao Estadão que a mulher fez uma visita ao centro espírita em que a ONG promove seus rituais e prometeu apoiá-lo financeiramente na construção de um projeto social no local onde hoje fica a Universidade Corporativa dos Correios (UNICORREIOS).
A iniciativa ofereceria cursos de capacitação para jovens negros e das periferias do DF, além de aulas de teologia voltadas às religiões de matriz africana. Mas o projeto nunca saiu do papel. A benfeitora nunca mais teria voltado ao local nem respondido aos contatos. A Polícia Civil do DF confirmou que Maria Gorete foi alvo de um mandado de prisão no mês passado por envolvimento em golpes.
Segundo as investigações, ela negociava a compra de terras e cobrava valores por serviço de georreferenciamento. Depois, desaparecia com o dinheiro. O advogado Bruno Trelinski, que a defende no caso, foi procurado, mas afirmou que não vai se manifestar enquanto não tiver acesso a todos os documentos do processo.
“A dona Maria Gorete fez uma doação. Ela esteve uma vez aqui no terreiro. Depois não tive mais notícias delas. Ela é uma pessoa amiga ligada ao terreiro. É frequentadora”, disse Pai Jorge ao Estadão.
Ele também afirmou que os R$ 279,5 milhões restantes seriam pagos pela ONG com recursos da venda de letras do Tesouro. “A gente tem alguns ativos que estamos negociando para poder serem pagos. Estamos aguardando o pagamento deles. Se o terreno for para leilão de novo, nós vamos entrar com os recursos.”
Pai Jorge nega ter desistido da licitação. Afirma que os Correios lhe informaram apenas que o processo seria cancelado devido a uma decisão de interromper a todas as vendas de imóveis da estatal. Também diz não saber que o cheque feito por Maria Gorette não tinha fundos.
“Nunca nos foi dada nenhuma posição. Agora que eu estou sabendo dessa situação. Não me disseram nada, só que era ordem superior. Eles só disseram que estava cancelada e que, se fossem reabrir, falariam comigo.”
Os Correios informaram que farão uma nova licitação e ressaltaram que o pagamento por meio de cheque era permitido pelas regras do edital. “A Diretoria Executiva acatou sua suspensão, incluindo diligências para averiguação de compliance e riscos em relação ao arrematante. O certame está em processo de anulação”, diz a estatal.
