Dos ‘soldados do tráfico’, 63% ganham até 2 salários mínimos e 58% trocariam o crime por um emprego
O presidente da Câmara, Hugo Motta, prometeu para esta terça-feira a votação do projeto antifacções, que ele definiu como “a resposta mais dura da história do Parlamento no enfrentamento do crime organizado”. Espera-se que seja realmente dura e eficaz contra os chefões do crime, que se disfarçam em suas mansões e carrões, e não só contra os “soldados e olheiros”, que ganham pouco, servem de escudo para salvar os mandachuvas e morrem cedo – como quantos dos mortos no Rio?
Nem chefões nem “soldados” são santos, todos são criminosos, mas é preciso combater o crime principalmente pela cabeça, não pelo pé, como desde sempre, até porque a oferta de “soldados e olheiros” é farta, imensa: jovens, pretos e criados em favelas, sem oportunidade de estudar devidamente, trabalhar decentemente e estímulo para viver dentro da lei. Um destino escrito nas estrelas – e na desigualdade social do Brasil.

Pesquisa do Data Favela, com 3.954 envolvidos com o crime em 23 Estados, nos revela qual é o perfil dessa tropa, por que eles enveredaram por esse caminho e o que realmente gostariam. Deles, 58% dizem que deixariam o crime se tivessem alternativa, uma chance de emprego. Nada ambicioso, bastaria uma vaga para sobreviver, já que 63% dos entrevistados arriscam a vida – deles e das vítimas – por até dois salários mínimos. Os bilionários do tráfico estão bem longe.
O Data Favela é o primeiro instituto brasileiro dedicado a pesquisar periferias e pobres, capacitando moradores para fazer as entrevistas nas suas próprias comunidades. Ou seja, com acesso, de igual para igual, pela origem, ou convivência. Por isso, o resultado da atual pesquisa é um retrato relevante da realidade, ou ‘Um Raio X da Vida Real’, como define seu título, apesar de, como muitos não aceitam falar, não poder ser generalizado e não corresponder à verdade de todas as pessoas envolvidas com o crime nas favelas.
Do universo pesquisado, 79% são homens, metade tem entre 13 e 26 anos e um quarto do total, entre 22 e 26. Logo, muito jovens. E vejam: 41% contam que curtiam estudar e 49%, que entraram no crime por falta de condições financeiras, em geral aliada a violência doméstica, abandono ou fome.
“Ah!, Bandido é bandido, quem não quer não vai para o crime”, dizem os que querem sangue, matança e operações letais como as do Rio, que, definitivamente, não foi um bom exemplo de ação policial bem planejada e bem sucedida.
Isso me lembra o desabafo de um delegado do próprio Rio, considerando que “está tudo errado, como se a gente (polícia) estivesse enxugando gelo”. Segundo ele, o garoto e a garota crescem praticamente abandonados, vendo a mãe e o pai – se ele ainda estiver por perto – acordando de madrugada, enfrentando ônibus transbordando de gente, dando um duro danado e chegar em casa, exaustos, sem dinheiro para pôr comida na mesa.
Esse policial resume: o garoto não tem nada, mal consegue comer, e vê o vizinho de tênis novo, roupa boa, namorando a moça bonita. Então, questiona o que é melhor: seguir o exemplo dos pais, ou o caminho do vizinho? A polícia conhece cada menor de idade que rouba celular pelo nome, prende e solta, prende e solta, e cada ida para a cadeia é uma aula do crime. Vira e mexe, um mata ou morre. Rotina.
Portanto, é preciso dar “uma resposta dura”, até duríssima, contra o crime. Mas jamais perdendo a humanidade, o respeito a limites e a processos e a noção de que não é enfileirando cadáveres de “soldados e olheiros” descartáveis, que se recrutam às dúzias, que vai se enfrentar o problema. Pode dar discurso a um certo tipo de candidato, mas a violência vai continuar fora de controle, alimentada pela incompetência/vontade política do Estado e pela igualmente criminosa injustiça social brasileira.
