Spray de pimenta e arma de choque para mulheres ganham força, mas expõem impasse
Às vésperas do Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, 25 de novembro, Estados avançam em propostas para liberar spray de pimenta e armas de eletrochoque como instrumentos de autoproteção feminina. No Rio, o projeto que autoriza o spray aguarda sanção; no Amazonas, o “taser” passa a ser permitido no dia 14.
A justificativa é semelhante: reforçar a defesa das mulheres em um país que registra, em média, quatro feminicídios por dia.
A produtora de eventos Eliane Zacarias, 49, acredita que o spray de pimenta salvou sua vida. Moradora do Rio de Janeiro, ela relata que, nos 25 anos em que esteve casada, foi vítima de diferentes formas de violência.
Encurralada
A rigidez da educação religiosa e a dependência emocional a impediram de denunciar. O medo, de reagir. Em 2023, após um comentário sobre um post no Instagram do marido, a situação escalou.
“Ele me encurralou entre a cama e a parede e começou a me agredir, com puxões de cabelo e socos na cabeça. Eu me vi trancada no quarto, sem ter para onde fugir. Consegui alcançar o spray e dei um jato no rosto dele”, conta.

O tempo ganho com a reação permitiu que ela pedisse socorro. “Foi a primeira vez que consegui paralisar o agressor.” Separada há três anos, Eliane ainda carrega o tubo de spray na bolsa. “Tenho medida protetiva, mas ele a quebra constantemente.”
Casos como o de Eliane se somam a estatísticas crescentes. Segundo o Painel Violência Contra a Mulher, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 818 mil novos registros de violência doméstica ingressaram na Justiça este ano, até setembro.
A preocupação é também a base do Projeto de Lei nº 6.141/2025, aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio e à espera de sanção. A proposta, assinada pelos deputados Rodrigo Amorim (União), Sarah Poncio (SDD), Tia Ju (REP), Guilherme Delaroli (PL), Dionísio Lins (PP) e Marcelo Dino (União), estabelece medidas para garantir o acesso de mulheres ao spray de extratos vegetais, como o de pimenta.
No Amazonas, a Lei 7.753 permitirá, a partir do dia 14, que mulheres portem armas de eletrochoque de até 10 joules. Na proposta, o autor, deputado Felipe Souza (PRD), defendeu que a medida busca fortalecer a segurança e a autonomia das mulheres diante da “crescente violência”.
Entre a vida e a morte
Para a ex-promotora de Justiça e advogada especialista em direito das mulheres, Gabriela Mansur, toda medida que amplia a capacidade defensiva da mulher é bem-vinda.
Gabriela considera iniciativas desse tipo como “recursos emergenciais” para reduzir danos e impedir agressões. Embora destaque que não podem substituir políticas públicas centrais.
“Em um cenário ideal, nenhuma mulher precisaria carregar spray, taser, botão do pânico ou sequer temer o próprio trajeto até o trabalho”, ela pondera. “No entanto, em um país que falha sistematicamente na proteção das mulheres, qualquer instrumento adicional de defesa pode representar a diferença entre a vida e a morte.”
Gabriela reforça que o Brasil segue entre os países que mais matam mulheres não por falta de leis, mas por ausência de implementação, estrutura e prioridade estatal. “Um país que não protege suas mulheres, não protege seu futuro”, afirma.
A vice-presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Izabelle Ramalho, pontua que transferir a responsabilidade da proteção para a mulher desvia o foco. “Embora possam revelar alguma sensibilidade ao problema, essas iniciativas não alcançam a raiz estrutural da violência de gênero”.
Para Izabelle, o que transforma indicadores é a prevenção primária através da educação, somada à atuação coordenada da Justiça e ao fortalecimento das redes de acolhimento.
Ela destaca ainda o risco operacional: a vítima, sem treinamento equivalente ao de um policial, pode perder o dispositivo para o agressor. “Esse fator pode, inclusive, agravar a violência, já em curso, ampliando ainda mais a vulnerabilidade e os riscos à sua integridade.”
Casos recentes reforçam essa inquietação. No último 1.º de novembro, uma jovem de 20 anos foi assassinada ao reagir a uma tentativa de assalto usando spray de pimenta. Um suspeito reagiu e atirou. Ele foi preso na terça, 18, na Bahia.
A discussão avança também no campo jurídico. Especialistas lembram que há forte entendimento de que a regulação de dispositivos controlados é competência da União, tornando leis estaduais vulneráveis a ações de inconstitucionalidade. Projetos semelhantes já enfrentaram resistência em outras unidades da Federação.
Em 2024, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), vetou projeto semelhante sob o argumento de que Estados e municípios não podem disciplinar produtos controlados nem regular armas deste tipo.
Produto controlado
No Amapá, uma iniciativa similar foi vetada este ano por suposta inconstitucionalidade e aguarda decisão sobre a manutenção do veto.
O advogado criminalista Matheus Sardinha explica que o spray de pimenta é um Produto Controlado pelo Exército (PCE) – sua fabricação, compra e uso exigem autorização.
Para civis fora de atividades de segurança, o emprego do spray pode gerar responsabilização administrativa e até criminal, com penas que variam de seis meses a quatro anos.
O uso de armas de eletrochoque, como tasers, é regulamentado no Brasil principalmente para forças de segurança e profissionais legalmente autorizados.
Não há uma norma federal que discipline de forma clara e específica a compra e o porte desses dispositivos por civis.
Internet
No Congresso, tramitam projetos que buscam autorizar o acesso controlado tanto ao spray quanto ao taser. Algumas propostas são gerais, para qualquer maior de idade; outras, específicas, como para mulheres com medida protetiva.
Apesar das restrições legais, sprays e dispositivos de eletrochoque podem ser facilmente encontrados para venda na internet, com entrega rápida e sem menção a exigências ou riscos.
No Rio de Janeiro, o Projeto de Lei nº 6.141/2025 busca transformar o spray de extratos vegetais, como o spray de pimenta, em um instrumento de defesa em situações como a enfrentada por Eliane Zacarias. Os autores do projeto defendem que o dispositivo é “eficaz, acessível e não letal”, capaz de criar tempo para que a mulher peça ajuda.
“Diferentemente de outros instrumentos de defesa, trata-se de um meio proporcional, que não atenta contra a vida do agressor, mas assegura à mulher condições de preservar a sua”, afirma o texto.
Dois frascos por mês
A proposta também pontua que, apesar das políticas públicas existentes, “muitas mulheres continuam desamparadas diante da escalada da violência”.
Aprovado pela Assembleia Legislativa, o projeto aguarda sanção do governador Cláudio Castro. Caso vire lei, a venda seria restrita a até dois frascos por mês, apenas para mulheres maiores de 18 anos, e limitada a estabelecimentos farmacêuticos.
Além disso, a concentração máxima seria de 20%. O Estado também ficaria autorizado a fornecer o spray gratuitamente a mulheres com medida protetiva.
Certidão negativa
No Amazonas, a Lei nº 7.753 foi sancionada em 15 de setembro. Ela autoriza mulheres maiores de 18 anos, residentes no Estado, a adquirir, possuir e portar armas de incapacitação neuromuscular, com potência máxima de 10 joules, para uso não letal voltado à defesa pessoal. Não estão incluídas armas de eletrochoque com dardos energizados.
A legislação exige que a usuária apresente certidão de antecedentes criminais negativa e laudo psicológico. Entre outros requisitos, também deverá fazer um curso de orientação. A proposta é de autoria do deputado Felipe Souza (PRD).
