23 de novembro de 2025
Politica

Queremos delegar ao Estado a tutela sobre a verdade?

Ainda no início deste ano, a AGU, sob a gestão de Jorge Messias, resolveu processar uma produtora de vídeos, com meio milhão de reais em indenização, por causa de um documentário sobre o julgamento de Maria da Penha, ocorrido há quarenta anos. Segundo a Advocacia-Geral da União, o filme traria “argumentos distorcidos” e “informações incompletas” sobre aquele episódio histórico. E isso justificaria o processo. Não por parte de alguém eventualmente ofendido, mas por parte do Estado.

Estamos todos tranquilos com isso? Queremos mesmo delegar ao governo do momento a definição sobre a “completude” ou a “correção” de fatos ou interpretações em filmes e documentários? Se um governo de esquerda pode fazer isso com um filme “conservador”, um governo de direita poderia fazer o mesmo se achasse que alguma obra “progressista” ande distorcendo isso ou aquilo, logo ali adiante?

Jorge Messias ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Jorge Messias ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Isto é absurdo. Não cabe ao governo usar a máquina jurídica do Estado para censurar cidadãos a partir das opiniões de quem ocupa provisoriamente o poder. Vai aqui uma lição elementar que nada tem a ver com esta ou aquela posição política. Vivemos em um País cuja Constituição garante não apenas a liberdade de pensamento, mas também que o poder atue com impessoalidade. É perfeitamente bizarro que pessoas sejam punidas porque um punhado de autoridades acha que elas não roteirizaram adequadamente um documentário. Não foi para isso que reconstruímos nossa democracia, a duras penas, nos anos 80.

São estas as questões que devem estar no debate do País nas próximas semanas. Muita gente pressionou Lula por uma indicação identitária para o Supremo. Uma carta assinada por juristas pedia a escolha de uma mulher negra para o Supremo. Lula deu de ombros. Ele sabe que os ativistas identitários estarão com ele nas eleições, de modo que não há nada a perder. A identidade que interessa a Lula é a lealdade política. Ele sabe que o Supremo se tornou o centro de poder da República, e que não vai muito além da retórica esta ideia de indicar para a Corte um jurista independente, de “notório saber jurídico”.

A pergunta que interessa ao País, é outra: Messias levará para o Supremo a mesma visão sobre nossas liberdades e garantias individuais que usou à frente da AGU? Queremos mesmo uma República em que os cidadãos são processados porque alguém, ocupando funções de poder, acha que um filme “distorceu” fatos da nossa história? Nossa Constituição autoriza que o Estado atue como tutor da verdade? Ou ela foi escrita exatamente para evitar que isto acontecesse?

Não é uma discussão sobre nomes ou lealdades políticas. Mas sobre ideias. Visões sobre o direito e a República, e não acho que deveríamos nos enganar sobre isso. Acima de tudo, o Congresso não deveria se enganar. Se hoje temos um País que aceita a relativização de direitos e perdeu muito da qualidade de sua democracia, é porque deixamos que isto acontecesse. Se vamos seguir nessa trilha, e por quanto tempo, é o que logo vamos saber.

 

 

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