Do Enem para as urnas: a crise que o Brasil precisa encarar
O tema da redação do Enem deste ano sobre o envelhecimento é um chamado moral e político para atentarmos a essa parcela-chave do país. O Brasil envelhece rapidamente — a população acima de 65 anos passou de 14 para 22 milhões entre 2010 e 2022, e até 2031 haverá mais idosos do que crianças no país. Isso altera profundamente nossa estrutura social. Até nossos poderes públicos envelheceram.
Com o primeiro presidente octogenário da história e eleitores 60+ cada vez mais representados, seria de se esperar que a longevidade virasse pauta central. O poder de voto do grupo, em tese, deveria forçar o debate. Torna-se, então, uma distopia perceber que, mesmo assim, a população idosa continua negligenciada sob a caneta dos poderes públicos.
Não se está falando apenas da crise do INSS. O debate público, viciado em economia, reduz a velhice a um problema contábil – mesmo quando pessoas idosas já respondem por 20% do consumo nacional. É a face mais clara do biopoder: o Estado administra a vida (e a morte) dessa população por números. Pergunta-se “quanto custa” um idoso, mas nunca “quem é” esse idoso. Antes da crise financeira, há uma crise de identidade.
O etarismo mais cruel não é a ofensa, mas a anulação. Num mundo que mede o valor humano pela produtividade, a aposentadoria se torna o marco do desaparecimento. O idoso passa do “sou” para o “era”: “eu era professor. Deixei de ser”. Ao entregar o crachá da profissão, a vida é empurrada para o espaço privado, vivida em silêncio em casa, invisível ao Estado. A “boa velhice” que resta é a passiva. Sentar-se na calçada e ver o mundo passar.
Um dos pilares dessa crise é o mito da independência. Hoje, confunde-se a dignidade com a autonomia absoluta. Ser independente é sinônimo de sucesso. Mas a velhice expõe que a dependência é, na verdade, a regra da condição humana. Admitir a necessidade de ajuda após uma vida “autônoma” não é apenas uma mudança prática; é uma ferida simbólica interpretada como inação do idoso e não como um Estado estagnado.
Essa obsessão pela autonomia tem custos reais. Ela mascara a crise do cuidado: ao tratar a dependência como fracasso pessoal, o debate público empurra o fardo para o âmbito privado, sobrecarregando mulheres — filhas e esposas cuidadoras — enquanto o Estado se omite de criar estruturas de cuidado coletivo.
E essa perda de papel não é democrática. As desigualdades definem quem envelhece com lazer, saúde e propósito — e quem é relegado ao isolamento ou à informalidade.
Questionar o mito da independência é, portanto, imperativo. Precisamos de políticas que reintegrem a terceira idade à sociedade. Isso exige mais que reformas: exige novos papéis sociais e terceiros espaços – locais de convivência e aprendizado onde o idoso não é depositado, mas participa. São palcos de cidadania.
O Enem ter escolhido esse tema é um alarme não só direcionado aos jovens, mas ao poder público. O voto idoso é uma força real. O chamado do Enem e a realidade das urnas convergem: enxergar o idoso como cidadão pleno não é apenas moral — é questão de sobrevivência política.
