Tensões com o Congresso reacendem debate sobre ‘politização’ do STF, avaliam juristas
As tensões entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso ganharam força outra vez após uma sequência de embates recentes que expôs a disputa por espaço entre os Poderes. No início de novembro, o STF determinou que o Legislativo regulamente o imposto sobre grandes fortunas, acirrando críticas no Parlamento sobre supostos excessos da Corte. Em outubro, a Câmara aprovou um projeto que limita decisões individuais de ministros do STF, numa tentativa de conter o que parte dos congressistas considera uma hipertrofia do Judiciário.
“O Supremo nunca esteve tão politizado”, afirma o advogado Maurício Felberg, relator-presidente da terceira turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP. “O Supremo ultrapassou seu papel de guardião constitucional e assumiu um protagonismo político que desequilibra a relação entre os Poderes”, sustenta Felberg.

Para ele, a politização da Justiça e a judicialização da política se retroalimentam, tornando o STF um ator central. “Quando o Judiciário vira ator político e começa a avançar sobre funções do Legislativo e do Executivo, ele se torna um superpoder, e isso ameaça a democracia”, disse.
Indicação de Messias, prisão de Bolsonaro
Nos últimos dias, outros dois fatos alimentaram a polêmica e consolidaram o papel da Corte nos rumos do País – a indicação do advogado-geral da União Jorge Messias para a cadeira do ministro Luís Roberto Barroso no STF e a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A detenção preventiva de Bolsonaro, decretada no sábado, 22, pelo ministro Alexandre de Moraes, e endossada nesta segunda, 24, por unanimidade pela Primeira Turma do STF, acirrou a ira da oposição que, em retaliação, pode travar votações importantes no Congresso de interesse do governo.
A escolha de Messias reforça a tese de que Lula escalou mais um amigo para o STF, o que causou a indignação do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, defensor da nomeação de seu antecessor, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Competências amplas
Segundo levantamento do Estadão, o governo Lula é o que mais acionou o Supremo para reverter medidas de interesse direto do Planalto desde 2003, transformando a judicialização em parte da articulação política do Executivo. É nesse ambiente que ganha força uma tese: o Supremo está assumindo funções políticas que não lhe cabem?
Especialistas ouvidos pela reportagem concordam que o Brasil vive um cenário de judicialização intensa da política, em que conflitos antes resolvidos pela via legislativa ou pelo diálogo entre Executivo e Congresso passaram a ser levados diretamente ao Judiciário.
Eles também reconhecem que o STF acumula competências amplas, que ampliam sua presença no debate público. Mas divergem sobre se isso configura politização da Corte, e sobre quais são os limites dessa interpretação.
Maurício Felberg diz que o problema também foi agravado pelas transmissões integrais das sessões, que transformaram julgamentos técnicos em eventos públicos. Em sua avaliação, a publicidade poderia ser garantida com transparência sobre os resultados, sem a necessidade de exibição completa. Ele defende o acesso à informação, mas argumenta que essa dinâmica incentivou comportamentos que reforçam o protagonismo do Tribunal na política.

A visão da politização, no entanto, não é compartilhada pelo advogado criminalista Lucas Ferreira, que considera apenas um alargamento de competências.
Ferreira afirma que o desenho institucional brasileiro, que permite ao STF julgar tanto questões constitucionais quanto casos criminais concretos, além do modelo de indicação presidencial, gera uma percepção social distorcida. “Vejo hoje o Supremo decidindo muitas coisas, trazendo para si competências bastante alargadas”, afirma.
Para o criminalista, isso pode acentuar uma impressão de politização, mas não significa que a Corte decida por motivações político-partidárias.
Raízes
A ampliação do papel do Supremo tem raízes estruturais. Para o constitucionalista Pedro Serrano, professor da PUC-SP, esse fortalecimento está ligado à redemocratização, quando, a partir de 1988, o STF passou a exercer plenamente sua função.

Serrano avalia que o Supremo deixou de ser um tribunal omisso e alinhado automaticamente ao Executivo, como ocorreu em parte da história republicana, e passou a se firmar como guardião da Constituição. Ele reconhece que há episódios de ativismo judicial, quando o Supremo ultrapassa suas funções e avança sobre competências de outros Poderes, mas sustenta que isso não caracteriza o funcionamento geral da Corte.
Pedro Serrano considera que o papel político do STF, no sentido técnico do termo, decorre diretamente de sua missão constitucional: aplicar a Constituição, proteger direitos fundamentais e impor limites ao poder político quando as maiorias ameaçam garantias básicas.
Esse modelo se consolidou no pós-guerra, após as experiências autoritárias do fascismo e do nazismo, que mostraram que maiorias eleitas também podem violar liberdades, ele argumenta. “Toda vez que as maiorias agridem direitos de minoria ou estruturas constitucionais do Estado, o Judiciário intervém para fazer valer a força da Constituição”, pondera. “É daí que nasce o papel contramajoritário das cortes constitucionais modernas.”
Ressentimento
A análise histórica também é enfatizada por Rubens Glezer, professor da FGV Direito SP e ex-coordenador do projeto Supremo em Pauta. Para ele, a percepção de politização ganhou força a partir de dois momentos: o julgamento do Mensalão – escândalo que abalou todo o primeiro governo Lula e colocou o STF no centro da cena política -, e a atuação da Corte durante o governo Bolsonaro, do inquérito das fake news ao julgamento das ações golpistas.

Segundo Glezer, a presença do Supremo nessas frentes ampliou tanto sua visibilidade quanto o ressentimento político. “Ele atuou esse tempo todo prendendo figuras relevantes da esquerda e da direita. É difícil afastar a convicção de perseguição quando o político que representa você está sendo investigado”, afirmou.
Esse desgaste, diz ele, também aparece em decisões de costumes. A constitucionalidade da união homoafetiva, a criminalização da homofobia e até casos em que o Tribunal protegeu direitos de Testemunhas de Jeová, como a possibilidade de recusar transfusão de sangue, provocaram reações opostas. O resultado, afirma, é que “cada lado se sente mais injustiçado que o outro”.
Glezer diferencia judicialização da política, estratégia adotada por atores políticos que antecipam o controle judicial, da politização do Judiciário, conceito que considera frequentemente mal definido. Ele rejeita a ideia de que o Tribunal seja guiado por preferências partidárias, mas reconhece que o contexto importa. “Se tento prever o que o STF fará só pela racionalidade jurídica, a atuação é imprevisível. Se analiso pela conjuntura política, fica mais previsível.”
As discussões sobre politização costumam ganhar força justamente nos casos de maior visibilidade pública. Em temas de grande repercussão, como ações de costumes ou julgamentos penais com forte carga moral, a percepção social tende a se deslocar para o terreno da disputa partidária, ainda que a motivação jurídica prevaleça. A combinação entre crise prolongada, alta exposição e decisões sensíveis ajuda a explicar por que parte da sociedade enxerga politização mesmo onde não há viés ideológico claro.
Reflexos políticos
No campo processual, Aury Lopes Jr., doutor em Direito Processual e Penal, também rejeita a tese de politização. Segundo ele, decisões judiciais inevitavelmente têm efeitos políticos, mas isso não significa que sejam motivadas por interesses partidários. “Não é que o Supremo esteja fazendo política nesse sentido ideológico, partidário. As decisões têm reflexos políticos, mas isso é inerente”, afirmou.
Aury destaca que toda interpretação envolve valores e visões de mundo, mas deve permanecer ancorada em parâmetros jurídicos. Para ele, o maior risco é o “decisionismo”, quando julgamentos perdem coerência interna. O Supremo, diz, deve corresponder “às expectativas jurídico-constitucionais, ainda que isso contrarie a vontade da maioria”.

Pedro Serrano ainda ressalta que parte das críticas à Corte tem caráter destrutivo, e não institucional. Ele lembra que, durante a tentativa de golpe, ministros foram alvo de ameaças e planos de atentado, cenário que demanda cautela na interpretação do discurso público. “Não podemos falar de politização sem falar da intenção destrutiva de algumas críticas, que querem destruir a democracia e o Judiciário, e não melhorá-lo”, afirmou.
Lacunas
O diagnóstico não é unânime. Há quem veja um Supremo que apenas ocupa lacunas deixadas pelo Legislativo, enquanto outros apontam excessos e perda de limites. Mesmo entre os que rejeitam a ideia de politização, prevalece a percepção de que o modelo institucional amplia o protagonismo da Corte e alimenta distorções no debate público. No que há mais consenso é que a judicialização da política se intensificou, enquanto as crises políticas dos últimos anos expuseram o Tribunal de forma inédita, tornando suas decisões mais contestadas e mais visíveis.
Maurício Felberg considera que a mudança ficou evidente nas últimas duas décadas, quando a Corte ganhou visibilidade inédita. “Há mais de 20 anos ninguém sabia o nome dos ministros do Supremo. O povo sabia a escalação da seleção brasileira. Hoje todo mundo sabe o nome dos ministros, o que é absolutamente incomum em outros países”, disse, ao relacionar essa exposição ao que considera um deslocamento do Tribunal para a arena política.
