1 de dezembro de 2025
Politica

‘Se os brasileiros forem às urnas inseguros, vão votar contra Lula’, avalia Felipe Nunes

A trajetória do Brasil nos últimos 26 anos pode ser resumida a uma volta no quarteirão: o País de hoje pensa como o de 1997. Essa é uma das conclusões do livro Brasil no Espelho, obra do cientista político Felipe Nunes que descortina o eleitorado brasileiro. O estudo foi realizado pela Quaest a pedido da TV Globo.

A partir de quase 10 mil entrevistas presenciais e domiciliares em aproximadamente 2 mil setores censitários de 340 municípios, Nunes afirma que a sociedade brasileira é menos binária e muito mais paradoxal do que sugerem as narrativas da polarização. O Brasil é, sim, um País de centro-direita, mas a ideologia aqui está longe de ser preto no branco — prova disso é que praticamente metade da esquerda é conservadora.

Em entrevista ao Estadão, Felipe Nunes afirma que o brasileiro voltou a viver com medo e que esse sentimento deve pautar a eleição presidencial de 2026.

“Viver em um país cujos valores de hoje são muito parecidos aos de 1997 mostra, primeiro, que a história não é linear; e, segundo, que quem disputar a Presidência em 2026 terá de produzir sensação de segurança para se manter no poder, ou, se quiser representar a mudança, incentivar ainda mais o medo e a insegurança na sociedade”, diz o cientista político. Para ele, sem Jair Bolsonaro (PL) nas urnas no ano que vem, a fórmula que levou Lula (PT) à vitória em 2022 já não é mais eficaz.

Abaixo, leia os principais trechos da entrevista.

Uma das constatações que mais chamam atenção no livro é a de que o Brasil “retrocedeu” e, na média, pensa hoje como em 1997. O que isso significa na prática?

A cultura de uma sociedade é profundamente influenciada pela percepção de segurança ou insegurança que as pessoas que vivem nela têm. Com isso na cabeça, conseguimos explicar por que, em momentos de guerra ou de escassez, surgem sociedades mais conservadoras, em que prevalecem valores tradicionais, da religião e da família. O oposto ocorre quando há abundância e estabilidade. Quando as pessoas se sentem seguras física, econômica e socialmente, elas se permitem viver outros valores.

A partir desse ponto de partida, fomos classificar o Brasil nos diferentes momentos da nossa trajetória recente, e a primeira grande descoberta é que, na média, os valores dos brasileiros hoje são muito parecidos com os de 1997. O que isso significa? Que muito do que vivemos em termos de crescimento econômico, distribuição de renda, construção de políticas de Estado e mudanças nos padrões de comportamento sexual sofreram uma certa interrupção. E o brasileiro voltou a se sentir inseguro, desconfiado e quer mais conservar do que inovar. Esse é um traço marcante do momento atual e que será determinante em 2026.

Em grande medida, o que o governo Lula está tentando fazer é produzir a percepção de bonança, estabilidade e segurança, tudo isso para dizer que o seu projeto deu certo. Mas o livro mostra que as pessoas não estão se sentindo dessa forma. Sentem-se inseguras, desconfiadas e, de certa maneira, atacadas. Isso produz comportamentos conservadores.

Viver em um país cujos valores de hoje são muito parecidos com os de 1997 mostra, primeiro, que a história não é linear; e, segundo, que quem disputar a Presidência em 2026 terá de produzir sensação de segurança para se manter no poder, ou, se quiser representar a mudança, incentivar ainda mais o medo e a insegurança na sociedade. Por isso o que vimos acontecer no Rio de Janeiro acaba tendo uma relevância enorme.

Capa do livro Brasil no Espelho, que chega nesta segunda-feira às livrarias
Capa do livro Brasil no Espelho, que chega nesta segunda-feira às livrarias

A partir do perfil do brasileiro que você traça no livro, o que podemos dizer que o eleitor vai buscar nas urnas na próxima eleição?

De um lado, estarão reunidos na mesma coalizão os militantes de esquerda, a classe D e E e os progressistas, que serão a base do projeto do Lula. Do outro, estarão os conservadores cristãos, os empresários, o agro e a extrema direita, contrários ao projeto do PT. E há dois tipos de eleitores em disputa: o liberal social, que nunca tinha votado no PT até 2022; e o empreendedor individual, que não existia como categoria antes de 2018 e passa a existir de 2018 para cá, sobretudo depois da pandemia.

Quem são os eleitores que fazem parte desses dois grupos?

Os liberais sociais são os antigos tucanos. É um eleitor que tem uma visão liberal sobre a economia, mas é social democrata na gestão do Estado. Já o empreendedor individual é basicamente filho da classe D e E – portanto, é pobre –, mas se enxerga como de classe média e não acha que o Estado é provedor de prosperidade. Ele é precarizado do ponto de vista do trabalho, mas prefere a flexibilidade. É o motorista de aplicativo, o entregador de comida, a cabeleireira, a manicure.

O que está em disputa é convencer liberais sociais e empreendedores individuais sobre de que lado devem estar: se é do lado mais Estado ou menos Estado, mais liberal ou mais conservador, mais democracia ou risco de golpe, mais regulação ou menos regulação. E a segurança aparece como um princípio que, na minha visão, vai nortear a disputa. Em grande medida, se os brasileiros forem às urnas inseguros, vão votar contra o Lula e contra o PT; se forem às urnas com esperança, e não com medo, esses dois tipos de eleitores tendem a dar mais um mandato para o Lula.

O que o brasileiro busca como resposta para a segurança? E há coerência entre essas expectativas e o que vemos hoje no Congresso e no governo?

O Brasil é claramente um País que tem medo de andar na rua, tem medo da violência que chega nas suas famílias e nas suas casas, e acha que a solução para essa violência pública é o punitivismo. O país continua sendo muito punitivista. Mas não armamentista. Esse é um achado importantíssimo da pesquisa. Isto é, nós queremos leis mais duras, punições mais severas para quem comete crime violento, mas não achamos que essa punição deva vir do indivíduo com as próprias mãos. Nesse sentido, a resposta que o Congresso está dando — e que a oposição busca — está muito alinhada com esse propósito. E o governo Lula sabe que esse é um dos temas em que terá dificuldades de debate na eleição, tanto pelas posições históricas quanto pelas posições recentes que tem adotado em relação à segurança.

O livro traz um bom presságio para a direita nesse assunto, que parece conseguir oferecer respostas aderentes ao que a sociedade defende. E isso reforça como o episódio da Carla Zambelli foi importante em 2022: quando ela sai na rua armada naquele último dia de campanha, aquela imagem funciona como um gatilho para brasileiros que têm medo, mas não acreditam em armar a população, algo que Bolsonaro defendeu abertamente.

O estudo mostra um salto na autoidentificação ideológica: em 2022, 85% dos brasileiros se colocavam à direita, à esquerda ou ao centro; na sua pesquisa, esse índice chega a 96%. Ao mesmo tempo, você diz que há contradições importantes entre campos e que a sociedade brasileira é menos binária e mais paradoxal do que supõem as narrativas da polarização. Por quê?

Para começar, porque há um contingente gigantesco que se diz de esquerda, mas que, quando classificado numa escala de progressista e conservador, é muito conservador. Praticamente metade da esquerda é conservadora. Isso explica, em grande medida, por que o Lula ganha eleição e por que alguns candidatos de esquerda têm dificuldade — como o Freixo no Rio e o Boulos em São Paulo. Quando você é identificado como progressista, afasta o conservador de esquerda. O Lula faz o contrário: consegue atrair o conservador de esquerda e, com isso, montar uma base majoritária.

E de onde vêm os paradoxos? Vêm, por exemplo, no papel do Estado. A direita brasileira está longe de ser liberal. A direita aqui defende o Estado como propulsor de resultado econômico, de geração de oportunidades e de provimento de educação e saúde para todos. Do mesmo jeito, a esquerda é paradoxal quando defende que a mulher cria melhor os filhos do que o homem.

A ideia de que a sociedade brasileira não é binária, é paradoxal, mostra que não há tanta clareza ideológica, embora existam afinidades políticas claras. A afinidade ao bolsonarismo e a afinidade ao lulismo me parecem mais fortes como traços da divisão política brasileira do que uma divisão ideológica propriamente dita.

O País hoje está mais conservador e mais à direita. Mas o que as descobertas da pesquisa indicam sobre o Brasil que vem pela frente?

Há um conflito latente entre o que chamo de “Geração Bossa Nova” (nascidos entre 1945 e 1964) e a “Geração.Com” (os nascidos entre 2000 e 2009). Talvez nunca tenhamos tido um nível de diferença de visão tão grande entre gerações. Enquanto a geração Bossa Nova é altamente conservadora, altamente tradicionalista, com uma posição de direita muito clara, a “Geração.Com” busca menos o conflito e mais o consenso; é muito mais tolerante, convive com a diferença com mais facilidade e propõe arranjos familiares novos e diferentes.

Isso significa que no futuro teremos um País mais à esquerda?

Eu diria que um país mais liberal, um país mais tolerante, que aceita melhor a diversidade e as diferenças. Se isso vai ser entendido no futuro como de esquerda, vamos ver, porque essas coisas mudam. Mas, se a “Geração.Com” mantiver os valores que ela tem hoje no futuro, o que vem por aí é uma população mais velha, mas menos conservadora.

Um achado curioso da pesquisa é que a maioria acredita que a redução da desigualdade deve vir de políticas universalistas, não de programas voltados aos mais pobres. Isso contraria a estratégia que o PT e o presidente Lula vêm adotando nos últimos anos?

Se essa pesquisa tivesse sido feita em 2003, o resultado seria muito diferente. Ali, as pessoas entendiam que o Estado precisava criar benefícios para os mais pobres. De lá para cá — e, fundamentalmente, depois da vitória do Bolsonaro, que optou por manter e aumentar o Bolsa Família —, os programas sociais passaram a ser vistos não mais como benefícios, mas como direitos. Ou seja, é o básico, não há mais a dinâmica da gratidão e, portanto, deixa de dar resultado eleitoral.

A sociedade brasileira hoje prefere um modelo em que todo mundo participe de alguma maneira dos benefícios do Estado, e não que se injete só dinheiro nos mais pobres. Por quê? Porque, e isso é chocante, há uma visão no País de que os pobres não lutam para deixar de ser pobres, então não merecem ajuda. O curioso é que os próprios pobres acham isso. Eles também acham que os programas trazem algum nível daquilo que a gente traduz como “preguiça”, mas que na verdade é a ideia de não produtividade.

O que os brasileiros estão dizendo é: as pessoas ficam menos produtivas quando passam a viver de programas sociais. Isso está cada vez mais eloquente num cenário em que as políticas são direitos, não benefícios. Essa é a grande mudança da história, e é óbvio que isso tira poder político se o governo achar que é só aí que a coisa vai acontecer — o que eu não acho que está acontecendo. Quando o governo traz a discussão do fim da escala “6 por 1” ou da justiça tributária, ele entendeu que só com Bolsa Família ele não vive mais.

A fórmula que o Lula usou na eleição de 2022 pode funcionar em 2026?

Como falei, há dois grupos em disputa: os liberais sociais e os empreendedores individuais. Em 2022, o Lula conseguiu atrair o apoio desses grupos porque havia, do outro lado, um cara chamado Jair Bolsonaro. E havia algo que esses dois grupos não toleravam: a possibilidade de uma ruptura democrática. Isso fez com que liberais sociais e empreendedores individuais estivessem do lado do Lula. Se, do outro lado, em 2026, não houver um Bolsonaro, eu diria que a fórmula que o Lula usou em 2022 não é eficaz mais, e o governo parece já ter entendido isso ao apostar em outras pautas.

A grande avenida política que o livro aponta é a necessidade de construir uma dinâmica de trabalho que gere menos cansaço — uma sociedade em que o trabalho não seja apenas pagar contas e em que a renda produza mais satisfação. O debate da escala 6 por 1 dialoga diretamente com essa dinâmica do cansaço: seis em cada sete brasileiros precisam de mais de um trabalho para complementar a renda, e 51% relatam espontaneamente cansaço ou emoções negativas. Diante disso, entram as agendas do “novo mundo do trabalho”: a escala 6 por 1, o desconto menor do imposto de renda e a tarifa zero do ônibus. Se o governo entende que é possível reduzir esse cansaço, tem uma avenida para explorar e atrair mais gente para o seu lado em 2026.

Tem algum outro achado, além da questão do cansaço, que você destacaria sobre como o brasileiro vê a dinâmica do trabalho?

O brasileiro da casa grande e senzala se cansou de ter patrão. As pessoas preferem trabalhar com flexibilidade e buscam formas de trabalho que não as subordinem a uma hierarquia patronal. Isso é muito novo no Brasil, porque o tradicional sempre foi o pobre chamar o patrão de “doutor”. Isso é subserviência do trabalho. O normal era o trabalhador “quebrar o galho” para o patrão, fazendo hora extra que não é paga, trabalhando além do devido sem remuneração. Quando as pessoas dizem “não quero ter patrão”, estão afirmando que não querem mais se submeter a esse tipo de situação, em que trabalham mais do que deveriam e recebem menos do que merecem.

Quais são hoje os principais temas que unem e que dividem os brasileiros? Estamos mesmo polarizados, como se costuma dizer?

Se tivesse que descrever o povo brasileiro, eu o descreveria como um povo que tem orgulho das nossas belezas naturais, que tem fé, é muito ligado à família, mas que está inseguro, desconfiado e ficou individualista, achando que não pode contar com ninguém. Tudo isso compõe uma unidade nacional.

Agora, existem temas que polarizam. O mais chocante deles é que continua sendo polarizante a visão sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Os modelos familiares também continuam polarizando: já existe uma parcela que aceita qualquer configuração familiar, mas há uma parte enorme que ainda defende o modelo tradicional.

Outra divisão importante é sobre preconceito e discriminação. Há avanços em direção a um país que respeita mais as diferenças e a diversidade, mas ainda há muito preconceito — racial, relacionado à aparência, ao sotaque… O maior deles é a discriminação de gênero. Claro que existe também a divisão ideológica entre esquerda e direita. E há uma divisão interessante quanto ao modo como se interpreta o “jeitinho brasileiro”. Para os mais ricos, é algo ruim; para os mais pobres, é a forma de sobreviver no país. Isso expressa bem a ideia do paradoxo brasileiro.

Você também chama atenção para um ponto curioso: a extrema direita não é tão numerosa quanto parece. Ela existe, claro, mas é mais barulhenta do que volumosa.

Se esse livro puder fazer uma única coisa, eu gostaria que ele nos ajudasse a chamar as pessoas pelo nome certo. Chamar todos os eleitores que votaram no Bolsonaro em 2022 de extrema direita é um equívoco semântico e político. Há, no Brasil, grupos de direita e há conservadores que não deveriam ser chamados de extrema direita. Eles têm outro nome: são conservadores cristãos, porque a religião é muito importante para eles. São do agro, porque têm uma identidade com o sertanejo e com aqueles valores tradicionais de quem vive em torno da terra. Você tem os empresários, que são burgueses na sua essência, mas não são iguais à extrema direita no que diz respeito a uma pergunta: o papel da democracia e da ditadura ou de um regime autoritário.

É verdade que, dentro de todos os segmentos do Brasil, existe um percentual que acha que, em algumas circunstâncias, um regime autoritário é melhor que uma democracia — 13% dos militantes de esquerda defendem isso, 8% dos liberais sociais defendem isso. Mas, no caso da extrema direita, 100% dizem que um regime autoritário é melhor do que uma democracia sob certas circunstâncias. Isso é um traço muito particular do que deveríamos chamar de extrema direita. São aproximadamente 6 milhões de pessoas. É muita gente, mas está longe de ser a mesma coisa do que o agro defende, do que o conservador cristão defende, do que o empresário defende.

 

 

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