O Estado sou eu
Não passa um dia sequer sem que o Supremo Tribunal Federal seja motivo de alguma controvérsia, desde o modelo da escolha daquele que o irá compor até a parcialidade de seus ministros.
E isso se deve precipuamente ao modelo adotado pelo Brasil quanto às suas funções constitucionais.
Vou tentar de forma bem sucinta e objetiva explicar quais são os dois principais modelos existentes.
Há basicamente dois modelos de atuação das Cortes Superiores pelo mundo.
No primeiro modelo, adotado pelo Brasil, o Supremo Tribunal Federal, além de Corte Constitucional, cuja competência é julgar a constitucionalidade das leis, também é o juiz natural da causa para processar na esfera criminal diversas autoridades com prerrogativa de foro, além de analisar recursos em última instância (recurso extraordinário).
No segundo modelo, adotado pela maioria dos países democráticos de primeiro mundo, a Suprema Corte é apenas uma corte constitucional, responsável por julgar a constitucionalidade das leis, o que reduz drasticamente o número de processos em tramitação.
É bom ressaltar que, na esmagadora maioria desses países, ou não há prerrogativa de foro, ou ela é limitada a poucas autoridades.
Não é preciso ser versado em direito para saber que nosso modelo transforma a Suprema Corte em uma tartaruga manca, levando à prescrição inúmeros crimes, quiçá a maioria.
Por outro lado, a possibilidade de perseguição pessoal, ideológica ou política, bem como de favorecimento próprio ou de terceiros, não pode ser descartada em razão da própria natureza humana. Isso se deve ao fato de que decisões monocráticas e liminares são proferidas usualmente, muitas delas com aparente desvio de finalidade, isto é, em causa própria ou para beneficiar terceiro, gerando compreensível desconfiança na população em geral. Ainda que tais decisões venham a ser confirmadas pelo colegiado, a desconfiança persiste, sobretudo porque o próprio modelo de escolha dos ministros é muito mais político do que meritório, o que foi sobremaneira acentuado na atualidade. Soma-se a isso o fenômeno do corporativismo, que infelizmente se tornou recorrente em diversas instituições e corporações públicas.
A reforçar minha assertiva, não raras vezes, a Suprema Corte, que possui a competência para julgar ações penais, fá-lo com viés ideológico, movida por razões políticas, o que é incompatível com o direito penal, que deve se ater a fatos e não à pessoa do acusado, relegando a segundo plano uma das características do direito penal, que é a impessoalidade, além de ferir o princípio da isonomia em que todos devem ser tratados da mesma maneira.
Além disso, comumente, o Supremo Tribunal Federal tem se imiscuído indevidamente nos demais Poderes, administrando o país, que é função do Executivo, e até mesmo criando ou alterando leis, atribuição típica do Legislativo.
Não cabe à Suprema Corte implementar políticas públicas e invadir a competência discricionária do Governo Federal, cujo representante máximo foi eleito para tanto. A gestão da pandemia pelos Estados, contrariando lei expressa que dava ao governo federal essa atribuição de forma geral, bem como a própria Constituição Federal, que determina caber à União instituir as regras gerais na gestão da saúde, é um dos exemplos marcantes de ativismo judicial.
Outro exemplo notório foi a cassação da nomeação do diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, de competência exclusiva do presidente da República, no mandato do então presidente Bolsonaro.
Na área da segurança pública, cuja competência é, em regra, dos Estados, o Pretório Excelso chegou a proibir operações policiais regulares nas comunidades do Rio de Janeiro, limitando-as a situações excepcionais, atividade típica dos órgãos de segurança pública e não de magistrados, sem praticamente nenhum conhecimento sobre o tema. O resultado dessa decisão, como todos sabem e viram, foi uma catástrofe anunciada, acarretando o aumento e fortalecimento das facções criminosas, de modo que só com aparato de guerra é possível adentrar às comunidades cariocas, naturalmente com confrontos e mortes indesejadas de policiais e de marginais.
Além desses casos, há vários outros, inclusive relacionados à isenção ou redução de impostos.
Na seara legislativa os atos se repetem. Quem elabora ou altera o teor de leis são os parlamentares eleitos para essa finalidade. No entanto, a Excelsa Corte, de forma totalmente anômala e inusitada, até mesmo criou crime, o de homofobia, por decisão judicial, mediante aplicação de analogia contra o réu, violando frontalmente o princípio secular da reserva legal, essencial em qualquer regime democrático para proteger a população do arbítrio estatal.
Há, ainda, processo em andamento, que pretende a liberação do aborto até determinado mês de gestação. E já foi concluído o julgamento do processo em que foi descriminalizada a posse de até 40 g de maconha para consumo pessoal. Referidas matérias deveriam ser discutidas e apreciadas pelos representantes do povo eleitos para essa finalidade e não por um Órgão cuja função é aplicar a lei ao caso concreto, ou seja, julgar.
A última investida na competência do Congresso Nacional foi a regulação das redes sociais por meio de decisão judicial, que já é feita pelo Marco Civil da Internet a contento, tanto que os Parlamentares entenderam não haver nada a alterar. Porém, o STF, de modo anômalo, julgou parcialmente inconstitucional o artigo 19 da referida lei, que se encontra vigente, válida e eficaz, dando-lhe nova interpretação, ao arrepio do processo legislativo regular, usurpando a competência constitucional do Poder Legislativo e criando espécie de censura, vedada constitucionalmente.
Sem contar ainda as constantes entrevistas e manifestações em que alguns ministros se dizem contrários à anistia aos envolvidos nos Atos de 8 de janeiro e à alteração da legislação para que as organizações criminosas sejam consideradas narcoterroristas, matérias afetas exclusivamente ao Poder Legislativo.
Nessas hipóteses, tendo eles já se manifestado abertamente sobre casos concretos que, fatalmente, irão julgar, deveriam, pela legislação vigente, declarar-se suspeitos ou impedidos. Contudo, como é notório, isso não ocorre e, mesmo diante de eventual arguição, tampouco são afastados dos processos por seus pares.
É evidente que a população, em geral, percebe tais decisões como atos de corporativismo, isto é, um ministro protegendo o outro e aguardando tratamento semelhante quando, eventualmente, chegar a sua vez.
Pior ainda quando as decisões aparentemente são proferidas em causa própria, alterando o teor de norma jurídica expressa ou sua interpretação consagrada há décadas, de modo a anular a atribuição constitucional do legislativo de elaborar normas jurídicas, afrontando a separação dos Poderes da República, um dos princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito.
Ora, o magistrado de qualquer instância que tem interesse no desfecho de um processo ou é amigo íntimo ou inimigo pessoal de qualquer das partes não pode proferir qualquer decisão processual, por estar impedido ou ser suspeito, a depender da hipótese.
Lembro que a imparcialidade do julgador é requisito tão essencial que sua inobservância acarreta a nulidade absoluta do processo desde a primeira decisão do magistrado considerado impedido ou suspeito. No caso específico dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a atuação em situação de suspeição, ainda que restrita a determinada decisão, pode configurar fundamento para a instauração de processo de impeachment, por se enquadrar como crime de responsabilidade.
O correto é que não se manifestem nem concedam entrevistas sobre temas que futuramente deverão julgar, a fim de evitar qualquer contaminação do processo e, ainda, impedir o exercício de pressão ou de influência indevida sobre parlamentares responsáveis pela votação de projeto de lei que tenha sido criticado ou tido como inconstitucional por ministro da Excelsa Corte, seja por um ou mais deles, antes mesmo do tema ser efetivamente levado a julgamento.
Como se trata de última instância, não há mais a quem recorrer, inexistindo o duplo grau de jurisdição, o que torna ainda mais deficiente o modelo adotado pelo Brasil, mormente em se tratando de ações penais, que deveriam se limitar a ter no polo passivo aquele que efetivamente possuir prerrogativa de foro pela natureza do cargo público ocupado por mandamento constitucional.
Ademais, como já cansei de escrever e falar, não há controle externo efetivo do Supremo Tribunal Federal. Os ministros não se submetem ao controle do Conselho Nacional de Justiça, não há corregedoria interna e o único controle constitucional, que deveria fazer valer o sistema de freios e contrapesos, realizado pelo Senado Federal, não funciona pelos mais variados motivos, que não me cabe aqui indicá-los.
Claro que os detentores de prerrogativa de foro e os criminosos em geral, notadamente do colarinho branco, que pagam competentes e caros advogados, quando soltos, preferem nosso modelo, visto conseguirem protelar os processos de forma a alcançar a prescrição em inúmeros casos ou mesmo atrasá-los de tal maneira, que acabarão com o julgamento de extinção da punibilidade pela morte do investigado ou acusado.
O melhor seria, para a quase totalidade dos jurisdicionados e para o Brasil, que houvesse alteração da Constituição Federal para reformular a atuação do Supremo Tribunal Federal para ser apenas uma corte constitucional, tendo como função exclusiva julgar a adequação da legislação às normas constitucionais em ações diretas com essa finalidade, deixando para os demais tribunais o julgamento de ações penais e recursos em geral, exceto neste último caso quando houver evidente e relevante questão constitucional.
Também deve ser discutido outro modelo de escolha dos Ministros da Corte, visto que o atual não tem se mostrado adequado.
Cabe ao presidente da República sua indicação e nomeação dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. São requisitos impostos pela Constituição Federal.
O indicado será sabatinado por 27 Senadores integrantes da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Caso aprovado por maioria simples (dos presentes) em votação secreta, caberá ao plenário da Casa referendar a indicação por maioria absoluta (41 votos) dos 81 possíveis.
Seria um modelo interessante se os Senadores realmente verificassem a presença dos requisitos para a aprovação da escolha, o que nem sempre ocorre.
Há outros modelos de escolha pelo mundo e o mandato temporário pode ser uma solução, muito embora possa ensejar mudanças de entendimento com o término do período de um ministro e a chegada de outro por meio de eleição, nomeação pelo Congresso Nacional, concurso público ou escolha pelos membros do Poder Judiciário, dentre outros métodos.
Enfim, não me parece boa a atual forma de nomeação e tampouco a competência demasiadamente alargada da Corte, deixando de lado sua verdadeira vocação, que é a defesa da ordem constitucional.
