10 de dezembro de 2025
Politica

Como a nova estratégia de defesa dos EUA pode afetar o Brasil ao priorizar o Hemisfério Ocidental

Se a nova Estratégia Nacional de Segurança dos EUA provocou reações entre aliados europeus em razão de seus ataques aos rumos da União Europeia, quase abandonada à própria sorte diante dos drones de Moscou, o documento divulgado pela Casa Branca na última sexta-feira, 5, deixou claro que uma das mais importantes mudanças geopolíticas da atualidade não está do outro lado do Atlântico, mas no chamado Hemisfério Ocidental, onde está o Brasil.

O presidente Trump com Lula durante encontro em Kuala Lampur, na Malásia: nova estratégia americana terá consequências para o Brasil
O presidente Trump com Lula durante encontro em Kuala Lampur, na Malásia: nova estratégia americana terá consequências para o Brasil

Ou como notou o coronel Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEx), “primeira vez em um documento desse tipo, o Hemisfério Ocidental passa a ser o foco central da estratégia americana”. Para o coronel, isso “significa menos atenção à Europa e ao Oriente Médio…E muito mais atenção ao Brasil, à América do Sul e ao Caribe”.

Mas de que forma essa atenção se daria? Como ela pode explicar a “química” entre Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump para além das simpatias mútuas? É possível encontrar parte dessas respostas no texto do documento.

Um dos pontos importantes dele é a exposição feita pela Casa Branca de que a sua política na região deve se “concentrar em recrutar campeões regionais que possam ajudar a criar uma estabilidade tolerável na região, mesmo além das fronteiras desses parceiros”. Esses países ajudariam a deter a “migração ilegal e desestabilizadora, neutralizar cartéis”, além de impulsionar investimentos nos EUA, como os feitos pela JBS e pela Embraer.

Uma imagem do vídeo postado pelo secretário da Guerra americano Pete Hegseth no X em sua conta no dia 24 de outubro mostrando um ataque a uma lancha, segundo o americano, do  Tren de Aragua, de traficantes venezuelanos, no Caribe; ação matou seis pessoas
Uma imagem do vídeo postado pelo secretário da Guerra americano Pete Hegseth no X em sua conta no dia 24 de outubro mostrando um ataque a uma lancha, segundo o americano, do Tren de Aragua, de traficantes venezuelanos, no Caribe; ação matou seis pessoas

Ao dizer que a administração Trump pretende recompensar e incentivar “os governos, partidos políticos e movimentos da região que estejam amplamente alinhados com nossos princípios e estratégia”, o documento americano afirma ao mesmo tempo que Washington não deve “desconsiderar governos com perspectivas diferentes com os quais, no entanto, compartilhamos interesses e que desejam trabalhar conosco”.

Esse seria o caso da coalizão liderada por Lula. Mas há ainda outro ponto que explica a disposição de um governo como o de Trump, influenciado por setores de uma direita extremada, de manter boas relações com o governo do petista. Trata-se do trecho em que o documento aborda o que chama de “realismo flexível”.

“A política dos EUA será realista ao que é possível e desejável buscar em suas relações com outras nações. Buscamos boas relações e relações comerciais pacíficas com as nações do mundo sem impor a elas mudanças democráticas ou outras mudanças sociais que difiram amplamente de suas tradições e histórias”, afirma o texto. Se isso se aplica a ditaduras árabes, por que não seria também aplicável ao caso brasileiro?

O porta-aviões USS Gerald R. Ford, o maior do mundo, durante exercício da OTAN no Mar do Norte, em setembro: embarcação foi deslocada para o Caribe
O porta-aviões USS Gerald R. Ford, o maior do mundo, durante exercício da OTAN no Mar do Norte, em setembro: embarcação foi deslocada para o Caribe

O documento prossegue: “Reconhecemos e afirmamos que não há nada de inconsistente ou hipócrita em agir de acordo com tal avaliação realista ou em manter boas relações com países cujos sistemas de governo e sociedades diferem dos nossos, mesmo enquanto incentivamos amigos com ideias semelhantes a defenderem nossas normas compartilhadas, promovendo nossos interesses ao fazê-lo”.

Ou seja, a chave da questão estaria na disposição do governo brasileiro de contrariar os interesses americanos no hemisfério. Ou seja, quando Lula acena com cooperação no combate ao crime transacional, ele estaria atendendo o objetivo número um da estratégia americana:

“Garantir que o Hemisfério Ocidental permaneça razoavelmente estável e bem governado o suficiente para prevenir e desencorajar a migração em massa para os Estados Unidos; queremos um Hemisfério cujos governos cooperem conosco contra narcoterroristas, cartéis e outras organizações criminosas transnacionais”.

Obuseiros M-109 e carros de combate Leopard da 5º Divisão do Exército sendo transportados para a Operação Atlas, em Roraima: exercício entra em fase decisiva
Obuseiros M-109 e carros de combate Leopard da 5º Divisão do Exército sendo transportados para a Operação Atlas, em Roraima: exercício entra em fase decisiva

Ou seja, enquanto o PCC, que investe no tráfico de drogas para a Europa e Ásia, não se transformar em grande operador nas rotas da droga para os EUA, as preocupações americanas com o Brasil nesse campo serão menores. A ênfase nesse ponto e a forma como a gestão Trump o liga com a imigração pode ser visto nesse trecho:

“Em países de todo o mundo, a migração em massa sobrecarregou os recursos internos, aumentou a violência e outros crimes, enfraqueceu a coesão social, distorceu os mercados de trabalho e minou a segurança nacional. A era da migração em massa precisa acabar. A segurança das fronteiras é o principal elemento da segurança nacional.”

Outro ponto da estratégia americana é buscar manter “um Hemisfério que permaneça livre de incursões estrangeiras hostis ou da posse de ativos-chave, e que apoie cadeias de suprimentos críticas”. É aqui que o documento faz sua mais polêmica afirmação para a região: “Queremos garantir nosso acesso contínuo a locais estratégicos importantes. Em outras palavras, afirmamos e aplicaremos um ‘corolário Trump’ à Doutrina Monroe”.

União Europeia virou o principal alvo da nova Estratégia Nacional de Defesa dos EUA Adobe Stock
União Europeia virou o principal alvo da nova Estratégia Nacional de Defesa dos EUA Adobe Stock

Os americanos deixam claro aqui seu desejo de intervir na região ao mesmo tempo que atacam seus aliados europeus. E afirmam considerar isso ser um direito, reagindo a questões como a taxação e regulamentação das chamadas big techs ou a pressão da UE contra o abandono da Ucrânia. Está ali, no trecho em que tratam de “soberania e respeito”, quando o documento afirma que “os Estados Unidos protegerão, sem pedir desculpas, sua própria soberania”.

“Isso inclui sua erosão por organizações transnacionais e internacionais, tentativas de potências ou entidades estrangeiras de censurar nosso discurso ou restringir os direitos de liberdade de expressão de nossos cidadãos, operações de lobby e influência que buscam direcionar nossas políticas ou nos envolver em conflitos estrangeiros, e a manipulação cínica de nosso sistema de imigração para construir blocos de votação leais a interesses estrangeiros dentro de nosso país.”

E concluem: “Os Estados Unidos traçarão seu próprio rumo no mundo e determinarão seu próprio destino, livres de interferência externa”. Para o coronel Paulo Filho, que passou o fim de semana estudando o documento, tudo isso pode ter consequências para o Brasil, além das relações da Casa Branca com o governo Lula.

O encontro do presidente argentino Javier Milei com a general Laura Richardson, em Ushuaia, na Terra do Fogo: promessa de base naval comum foi feita ainda no governo Biden
O encontro do presidente argentino Javier Milei com a general Laura Richardson, em Ushuaia, na Terra do Fogo: promessa de base naval comum foi feita ainda no governo Biden

E elas devem se manifestar principalmente por meio de pressão a respeito dos minerais estratégicos e terras raras; dos investimentos chineses em tecnologia, energia, portos e 5G; das decisões políticas federais e estaduais que prevejam parcerias com a China e das políticas comerciais e industriais que incluam potências extrarregionais.

Para os EUA, a “disputa por cadeias críticas coloca o Brasil no centro da geopolítica”. “Temos 23% das reservas mundiais de terras raras”. E para a Estratégia Nacional de Defesa de 2025, isso é uma questão de segurança nacional dos EUA. “Em síntese: A América Latina volta ao tabuleiro como espaço estratégico prioritário. A competição EUA–China se intensifica exatamente aqui. E a Europa deixa de ser o eixo central da política de segurança americana.”

O aumento da presença militar americana no Caribe veio para ficar, pois se trata, como afirma o documento, de um “reajuste” da “presença militar global para lidar com ameaças urgentes em nosso Hemisfério, especialmente as missões identificadas nesta estratégia, e para longe de teatros de operações cuja importância relativa para a segurança nacional americana tenha diminuído nas últimas décadas ou anos”.

Imigrantes da Venezuela fazem fila em Posto de Recepção de Apoio da Operação Acolhida em Boa Vista, capital de Roraima, para almoçar
Imigrantes da Venezuela fazem fila em Posto de Recepção de Apoio da Operação Acolhida em Boa Vista, capital de Roraima, para almoçar

Vai dar certo? Ninguém sabe. Mas terá consequências muito além daquelas enfrentadas hoje pelo ditador Maduro. E uma delas será despertar reações, como a do ex-ministro do STF, Celso de Mello, em artigo no Blog do Fausto, que chamou a reedição da ‘doutrina Monroe” de “preocupante arrogância imperial”. “Trata-se, a um só tempo, de gesto anacrônico, de vocação hegemônica inadmissível e de grave retrocesso histórico, pois reedita fórmulas obsoletas que o Direito Internacional e a consciência democrática das nações há muito repudiaram.”

A curto prazo, cabe às agências brasileiras estarem preparadas para um possível aumento do fluxo de refugiados em Roraima e para a possibilidade de um enfraquecimento do poder estatal na Venezuela levar à captura de áreas daquele país pelo narcotráfico. Durante muito tempo, o Brasil viu a geopolítica como algo que começava no Rio Reno; havia um Atlântico a proteger o Pais. A nova estratégia americana transformou os oceanos em rios. Primeiro, com a largura do Rio Grande. Depois, com as margens do Orenoco. E amanhã? Seu tamanho será o do Amazonas?

 

 

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