Ministro do STF que decide sobre fato em que é suspeito deve ser alvo de processo de impeachment
Desde a Roma antiga já existia a percepção de que todo homem público não só deveria ser honesto, mas também parecer honesto. E bem por isso o imperador Júlio Cesar, segundo relata Plutarco, historiador grego, em sua obra Vidas Paralelas, proferiu a célebre frase: “A mulher de César não basta ser honesta; deve parecer honesta”.
Mesmo antes da viagem do ministro Dias Toffoli no jatinho particular do empresário Luiz Oswaldo Pastore, voo no qual também se encontrava o advogado Augusto Arruda Botelho, defensor de um diretor de compliance do Banco Master investigado pela Polícia Federal em um caso de fraudes, o presidente da Suprema Corte, ministro Edson Fachin, já cogitava a criação de um código de ética destinado a alcançar todos os ministros dos tribunais superiores. No caso do STF, em razão de suas peculiaridades institucionais, seria elaborado um código próprio, distinto dos demais.
Na ocasião da viagem, o procedimento investigatório envolvendo o Banco Master ainda não havia sido distribuído ao gabinete do ministro; porém, pouco tempo após, ele foi sorteado como o ministro responsável pela investigação, haja vista a existência de suspeito com prerrogativa de foro perante a Suprema Corte.
Pouco se sabe sobre o andamento das investigações em razão da decretação de sigilo dos atos procedimentais. Além disso, o ministro responsável determinou que todas as futuras diligências somente poderiam ser realizadas mediante sua autorização prévia.
É evidente que tais acontecimentos suscitaram suspeitas e questionamentos. Segundo noticiado pela imprensa, inclusive ministros ouvidos nos bastidores teriam criticado a conduta do colega, apontando que tal postura seria prejudicial à imagem da Corte.
Por conta desse fato e de outros episódios ocorridos nos últimos anos, surgiram questionamentos acerca da inexistência de um controle efetivo sobre atos oficiais e particulares praticados por ministros do Supremo Tribunal Federal. Não por acaso, o próprio Presidente da Corte tem defendido a criação de um código de ética para os ministros dos tribunais superiores, medida que, ao menos em tese, revela a percepção de que alguns de seus integrantes estariam atuando em desconformidade com padrões éticos mínimos.
A ética consiste em um conjunto de valores e princípios que orientam o comportamento humano, permitindo distinguir moralmente o correto do incorreto. Ela guia condutas pessoais e profissionais com base em critérios de justiça, honestidade, respeito, dignidade e responsabilidade.
A moral, por sua vez, representa a exteriorização prática desses fundamentos éticos. Refere-se ao conjunto de regras e valores seguidos pelas pessoas em seu cotidiano, variando conforme a cultura de cada povo e de acordo com a evolução da sociedade. Assim, enquanto a moral tem caráter pragmático e mutável, a ética possui natureza teórica e busca princípios mais universais para justificar e avaliar as condutas humanas.
Resumindo, a ética e consequentemente a moral são o que há de mais importante em relações humanas e profissionais, sem as quais a pessoa não pode ser considerada digna e honesta pessoal e/ou profissionalmente.
O magistrado deve ser o primeiro a observar a legislação e se comportar de acordo com a ética e a moral, norte de todo aquele investido na sagrada missão de solucionar os conflitos existentes entre os particulares ou destes com o Estado, o que pode impactar profundamente na vida dos jurisdicionados e da sociedade em geral.
Aliás, sequer seria necessário a elaboração de um código de ética, caso fossem efetivamente observadas as normas já existentes na Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN), bem como as regras de suspeição e impedimento previstas no direito positivo.
E do que se tratam os institutos da suspeição e impedimento dos magistrados?
Uma das regras fundamentais na judicatura é a imparcialidade do magistrado. Do contrário, com juiz tendencioso, não se aplica a verdadeira justiça.
Nosso sistema processual traz regras para que o magistrado parcial seja afastado do processo. São os casos de impedimento e de suspeição.
Impedimento liga objetivamente o magistrado ao processo, ao passo que suspeição às partes envolvidas no litígio.
A decisão proferida por juiz parcial é tão viciada, que é como se o ato judicial não existisse.
Além do mais, por ser uma das situações mais atentatórias à dignidade da Justiça, o Ministro do Supremo Tribunal Federal que decide sobre fato que é suspeito, em tese, deveria ser alvo de processo de impeachment por ter cometido crime de responsabilidade, com fundamento no artigo 39, 2, da Lei nº 1.079/1950.
O artigo 252 do Código de Processo Penal traz situações em que há interesse, direto ou indireto, do magistrado no desfecho do processo, anterior participação profissional ou de pessoas a ele ligadas por laços de parentesco, ou como testemunha. Diz a norma: “Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito; II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha; III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão; IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito”. Trata-se de causas de impedimento, que objetivamente devem afastar o magistrado do processo.
Já o artigo 254, inciso I, do mesmo diploma legal, cuida de modalidade de suspeição em que os sentimentos do magistrado em relação a uma das partes (autor ou réu) podem levá-lo a uma decisão parcial. Diz a norma: “Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes. I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;”.
O Código de Processo Civil também elenca causas de impedimento e de suspeição de magistrados semelhantes às previstas na legislação processual penal, de forma mais ampla e detalhada (arts. 144 e 145).
De acordo com o artigo 145, incisos I e IV, do Código de Processo Civil, há suspeição do Juiz: I – amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados; V – interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.
Aquele Magistrado que, por qualquer motivo, possui interesse no desfecho do processo, dele participou como advogado ou promotor de justiça, já antecipou seu entendimento no caso concreto, possui séria desavença com qualquer das partes ou é delas amigo íntimo, dentre outras situações legalmente previstas, tem de se dar por suspeito ou impedido, a depender da hipótese. Se não o fizer, há procedimento próprio previsto no Código de Processo Penal e no Código de Processo Civil para afastar o Magistrado suspeito ou impedido do processo.
Não é possível ao magistrado de qualquer instância nutrir afeto ou raiva em relação àquele que irá julgar. Tal proceder fere a regra mais basilar da judicatura, a imparcialidade, posto que a natureza humana o impede de proferir julgamento justo, já que estará envenenado pela raiva por seu inimigo, ou com pena ou comiseração de seu amigo, afastando a necessária objetividade.
Frequentar a casa da parte de processo de sua responsabilidade; ser padrinho de casamento de seu filho; aceitar convite para palestrar com todas as despesas pagas por parte de processo que irá julgar, notadamente para o exterior em hotéis de luxo; viajar em avião particular de empresário ou empresa com processos que tramitam em câmara ou turma de tribunal onde oficia, são exemplos típicos de casos de suspeição, já que, mesmo não querendo, tais situações maculam o livre convencimento do Magistrado, que terá preferência pela parte que de algum modo lhe favoreceu ou por quem nutre afeto.
Magistrado que deve favores a quem quer que seja pode até julgar de forma imparcial, o que não é a regra, mas a desconfiança dos jurisdicionados sempre haverá.
Do mesmo modo, o magistrado que se apaixonou pela causa e tem interesse pessoal, moral ou material no resultado, não possui a menor condição de proferir julgamento correto por mais que se esforce. Isso ocorre quando já demonstra predisposição para julgar de um ou outro modo, o que comumente se vê quando antecipa sua posição ou mesmo se arvora em investigador, o que, decerto, mesmo que inconscientemente, levará a julgar de modo incorreto e de acordo com sua preconcepção dos fatos, marcada por sua ideologia.
Pior, ainda, quando o magistrado brada na imprensa ou nas redes sociais contra uma ou mais pessoas, deixando evidente sua raiva ou intenção de julgar em desfavor delas. Trata-se de caso típico de suspeição por externar o magistrado seus sentimentos negativos em relação a essas pessoas, o que o impede de oficiar de forma isenta em eventual ação em que elas sejam partes (autores ou réus), tanto por suspeição, por serem consideradas seus inimigos capitais, quanto por impedimento, por já ter deixado evidente como julgará o processo.
Tais vícios processuais maculam de forma profunda o processo, desde a primeira decisão do magistrado, contaminando todas as demais, que serão absolutamente nulas.
Por isso, não é dado ao magistrado antecipar a forma como julgará e muito menos proferir qualquer decisão com a conclusão preconcebida de como irá fazê-lo.
Basta, assim, que, verificando sua suspeição ou impedimento, conforme determina a legislação, afaste-se do processo para que outro magistrado imparcial possa presidi-lo e proferir a sentença (ou voto em acórdão) ou decisão. Caso não o faça, cabe à parte interessada ingressar com a respectiva exceção, procedimento previsto na legislação para que seja o magistrado afastado do processo pelo órgão jurisdicional competente.
O que os jurisdicionados esperam, seja como autores ou réus nos milhões de processos que tramitam todos os anos pelas diversas Varas e Tribunais, é que sejam julgados por magistrados imparciais, observado o princípio do juiz natural, isto é, obedecidas as regras de competência, que existem justamente para preservar a imparcialidade daquele que irá decidir, muitas vezes, a vida das partes envolvidas no processo.
Os casos de suspeição e impedimento previstos para os magistrados aplicam-se, por analogia, aos membros do Ministério Público, uma vez que, seja na qualidade de parte (como autores da ação) ou de custos legis (fiscais da ordem jurídica), devem atuar com plena isenção e imparcialidade. Tal entendimento decorre do artigo 148, inciso I, do Código de Processo Civil, cuja aplicação analógica ao processo penal é admitida diante da ausência de norma específica no Código de Processo Penal, nos termos do artigo 3º do CPP. A doutrina e a jurisprudência, de forma pacífica, reconhecem essa possibilidade, a fim de preservar a imparcialidade e a regularidade da atuação ministerial, tanto na esfera cível quanto na penal.
Outra questão que tem ganhado destaque na mídia diz respeito a escritórios de advocacia que atuam nos tribunais superiores e que possuem, como sócios ou titulares, esposas ou filhos de ministros dessas Cortes.
Isso porque, recentemente (08/2023), na ADI 5953/DF, tendo como redator o ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, declarou a inconstitucionalidade do seguinte dispositivo do Código de Processo Civil:
“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:
(…)
VIII – em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”.
O principal argumento consignado foi o de que o magistrado não teria condições de conhecer a carteira de clientes de seus parentes. Além disso, considerou-se irrazoável impedir que o juiz julgasse processos patrocinados por advogados que não integram seu círculo familiar ou de intimidade, apenas pelo fato de trabalharem no mesmo escritório do parente.
Entretanto, a questão que se coloca é outra: pode o magistrado julgar causa na qual possua interesse direto ou indireto? Afinal, é evidente que, ao terem esposas ou filhos como sócios ou integrantes de escritórios que litigam perante o tribunal, ministros do STF têm interesse objetivo na declaração de inconstitucionalidade da norma, por razões óbvias.
Assim, ministro que se encontre nessa situação, possuindo familiares que integram escritórios atuantes na Corte, claramente é suspeito (à luz do CPC) e impedido (nos termos do CPP) para julgar essa ação específica, por possuir interesse no resultado.
Note-se que, com a norma então vigente, a solução seria simples: distribuído ao magistrado processo relativo ao escritório de sua esposa ou filho, bastaria que se declarasse suspeito (ou impedido), determinando a redistribuição do feito ou sua remessa ao substituto automático. A própria parte poderia suscitar essa circunstância, o que obrigaria o magistrado, conforme a natureza civil ou penal do processo, a reconhecer a suspeição ou o impedimento.
Ademais, com os meios informáticos atualmente disponíveis, a operacionalização da norma era absolutamente viável. Bastaria vontade institucional para implementar mecanismos que permitissem identificar, de forma segura e automática, vínculos familiares de magistrados com advogados e escritórios constantes dos autos, garantindo o afastamento imediato quando necessário.
E, repito, como já dizia César há mais de dois milênios: “A mulher de César não basta ser honesta; deve parecer honesta”.
Enfim, no sistema de justiça não pode subsistir qualquer tipo de desconfiança quanto à parcialidade do Magistrado, responsável por decidir não só casos que repercutirão profundamente na vida de uma pessoa e de sua família, como também em processos que afetarão a todos os brasileiros.
Segue link de artigo que trato do controle do STF:
https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/como-controlar-externamente-o-stf/
