Será que o Brasil é o país da gambiarra?
Poucas palavras são tão brasileiras como gambiarra. O gato, o jeito, o puxadinho. Pode ser aquele emaranhado de fios nas ruas de São Paulo. Ou leis costuradas em algum “acordão” no Congresso. O PL da Dosimetria é isso. Uma gambiarra. Ele mexe nos dispositivos do Código Penal sobre crimes contra o Estado de Direito — introduzidos há poucos anos — e também na Lei de Execução Penal. E faz isso evitando tratar a coisa toda pelo nome: uma anistia branda para os condenados da “trama golpista”. Leio um texto dizendo que o PL seria um “abuso de poder legislativo”, visto que se estaria mudando leis para driblar decisões da justiça. Algo como os líderes do PCC serem julgados por seus crimes, e por alguma razão arranjarem uma maioria no Congresso para mudar a lei penal a seu favor.
O raciocínio é ótimo, mas fica pela metade. A forma como estes julgamentos foram conduzidos foi igualmente uma gambiarra. Ou alguém acha que julgar pessoas sem “foro privilegiado” diretamente no Supremo não é um tipo de puxadinho? E as condutas não individualizadas, no 8 de janeiro? E o rapaz da bola do Neymar condenado a 17 anos, a moça do batom, a 14 anos? Muita gente acha que isso não faz sentido por um argumento algo metafísico: o Supremo não poderia ser criticado, dado que é a “última instância”. E que lei mesmo, de verdade, é o que ele diz, e não o que está escrito na Constituição. E que contestar estas coisas é andar na fronteira da ilegalidade. Dias atrás um leitor me escreveu que já era hora de mandar para o xilindró esses jornalistas que andam criticando o Supremo. Perfeito. Talvez seja o passo que está faltando para o País se tornar, finalmente, uma verdadeira democracia.
O resumo da ópera é que temos gambiarras de um e outro lado. Algo como: a lei diz que a competência de impeachments de ministros do STF é “privativa” do Senado. Mas porque não colocar a PGR por ali, como filtro? E quem sabe dar uma ajustada no quórum, para dois terços, para admitir o processo? Vale o mesmo para nossa gambiarra-mãe, os “inquéritos” sobre fakenews e assemelhados. A fantástica saga hermenêutica brasileira que converteu um comando do regimento interno do Supremo para investigar delitos na “sede” da Corte em uma espécie de mandato universal e quiçá interplanetário para salvar a democracia, com direito a investigar Elon Musk, mesmo que ele fuja para Marte.
O Brasil deveria dar um tempo. Nenhuma “dosimetria” seria necessária se o que diz a lei tivesse sido seguido, na investigação e punição daquelas pessoas, desde o início. Das minhas leituras do grande James Madison, aprendi que a República e as leis foram feitas porque os homens não são anjos. De modo que é preciso limitar o poder. A gambiarra é o inverso disso: a lógica do poder sem limites. A captura do poder pela quebra do direito. O que muitas vezes chamei de governo dos homens, ao invés do governo das leis. É uma lógica sedutora, na guerra política, mas péssima para o País. De minha parte, não quero viver em uma gambiarra, e sim em uma república. Mas desconfio que não seja esta a forma de pensar de quem anda à frente de nossas instituições, nos dias que correm.
