A milésima segunda noite
Certo dia,
Odisseu não partirá;
Romeu não conhecerá Julieta;
Raskólnikov não cometerá crime algum;
Riobaldo não amará Diadorim.
Algum dia,
Jesus não morrerá na cruz;
Gabriel não visitará Maomé;
Buda não iluminará;
Shiva nada terá a destruir.
Nesse dia,
Chapéuzinho não irá pela floresta;
Pinóquio não contará mentiras;
Cinderela não esquecerá o sapatinho;
A princesa não beijará o sapo.
Um dia,
Não haverá pedra no meio do caminho.
Não existirá caminho, nem pedra.
Essas serão pré-estórias da pré-história da pré-estória…
E tudo terá sido um grande sim.
Dia a dia
Quando acordo, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando escovo os dentes, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando tomo café, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando abro a porta, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando me desloco, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando respiro, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando trabalho, repito atos mecânicose compulsivos.
Quando almoço, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando retorno ao trabalho, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando vou ao banheiro, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando olho o relógio, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando paro de trabalhar, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando volto para casa, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando me banho, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando cozinho a janta, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando ligo a televisão, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando lavo a roupa, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando me deito, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando penso, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando amo, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando choro, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando adormeço, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando sonho, repito atos mecânicos e compulsivos.
Quando repito atos mecânicos e compulsivos, ofereço à vida um sorriso.
Indefinições
Nostalgia é melancolia envelhecida;
Melancolia é tristeza em suspiros;
Tristeza é ilusão de verdade;
Verdade é inexistência de mentira.
Não creia em minhas palavras,
Sou um verdadeiro mitômano.
Minha consciência é artífice da trapaça;
Invento o mundo compulsivamente.
Minha franqueza é enganosa,
Não minto porque gosto:
Minto porque sou humano
Composto de parcos aforismos.
Verso é rio que corre;
Estrofe é vento que sopra;
Lágrima é oceano ínfimo;
Compor é sentir silêncios.
Poesia é mentira verdadeira;
Palavra que se perde;
Truísmo que se falseia;
Vida que sangra
Das veredas de cada um.
