A Constituição não pede licença ao Congresso
Quando uma decisão judicial aponta para a perda de mandato parlamentar, o debate público brasileiro costuma escorregar para uma falsa dicotomia: ou o Judiciário estaria “invadindo” a esfera política, ou o Congresso Nacional teria o direito de resistir à decisão em nome da soberania popular? Essa leitura, embora sedutora do ponto de vista retórico, é constitucionalmente equivocada. Explico: o caso envolvendo o mandato da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) não revela um conflito entre os Poderes, mas, sim, uma dificuldade recorrente de se compreender que nem todo juízo político é discricionário; e que nem toda consequência constitucional depende da vontade do Parlamento.
A perda de mandato decorrente de decisão judicial não é ato de voluntarismo judicial, tampouco expressão de ativismo. Trata-se de um juízo jurídico-constitucional, fundado na incidência objetiva das hipóteses previstas no artigo 55 da Constituição Federal, especialmente quando há condenação criminal com efeitos incompatíveis com o exercício da função parlamentar, como a suspensão de direitos políticos ou a imposição de pena que inviabilize o mandato. Nestes casos, o juízo é técnico, vinculado e declaratório – presentes os pressupostos constitucionais, a consequência jurídica se impõe por força da própria Carta Magna.
Em plano diverso, situa-se o juízo político-institucional exercido pelo Congresso Nacional. Ele existe, é legítimo e cumpre papel central na preservação da autonomia do Parlamento, da representatividade popular e da ética no exercício do mandato. É neste espaço que se inserem os processos de cassação por quebra de decoro parlamentar, nos quais a Constituição Federal, deliberadamente, confere margem à avaliação política dos pares. Não é, contudo, este o mesmo terreno normativo em que se projeta a perda de mandato como efeito jurídico de uma decisão definitiva.
O ponto sensível — e frequentemente ignorado no debate público — está justamente aqui: quando a Lei Maior transforma determinado fato jurídico em consequência obrigatória, o Parlamento não recebe um poder de escolha. Ora, o Congresso Nacional não tem credenciais e prerrogativa para revisar decisão judicial, não a ratifica politicamente, e nem pode neutralizá-la por conveniência. Sua atuação, em casos desta natureza, é reconhecer e formalizar, de forma institucional, o efeito legal já produzido. Em suma, trata-se de um juízo de execução constitucional – não de deliberação política autônoma.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido consistente ao afirmar que a separação de Poderes no Brasil não autoriza a anulação recíproca de decisões legítimas – exige, por outro lado, atuação harmônica dentro das competências constitucionalmente delineadas. Harmonia, neste contexto, não significa alinhamento político ou concordância circunstancial. Representa fidelidade ao que prevê historicamente a Carta Magna. Ao meu juízo, transformar uma consequência jurídica vinculante num objeto de negociação política, além de não fortalecer o Parlamento, fragiliza a Constituição Federal.
Compatibilizar a decisão judicial com o juízo político do Congresso Nacional, portanto, exige maturidade institucional. O Judiciário declara o efeito jurídico-constitucional e o Parlamento o absorve no plano institucional.
A Lei Maior não pede licença à Casa Legislativa para produzir seus efeitos, assim como deputados federais e senadores não podem suspender a Constituição por razões de oportunidade política. Quando tal fronteira é ultrapassada, o problema deixa de ser o destino de um mandato específico e passa a ser algo muito mais grave: a corrosão silenciosa do Estado Constitucional de Direito.
