O risco de desmontar o equilíbrio processual sob o pretexto da proteção
É preciso acender o alerta: o Código de Processo Civil (CPC) sofreu uma inadequada modificação, o que representa uma ameaça concreta à estabilidade das relações jurídicas. A recente alteração promovida pela Lei 14.879/2024, ao restringir a cláusula de eleição de foro a critérios geográficos rígidos, desfigura princípios fundamentais do sistema processual. A pretexto de proteger a parte vulnerável, a norma fragiliza a autonomia negocial até mesmo entre contratantes que se encontram em total paridade jurídica e econômica.
Não se trata de uma crítica à proteção do hipossuficiente, que deve ser reforçada sempre que houver desequilíbrio nas relações contratuais. Mas é preciso separar o joio do trigo. Quando a exceção vira regra — e pior, uma regra que presume abusividade mesmo onde há simetria entre as partes —, o sistema deixa de ser justo para se tornar arbitrário. E é justamente por isso que o Conselho Federal da OAB decidiu, com unanimidade e firmeza, questionar essa mudança no Supremo Tribunal Federal por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade.
O novo texto do artigo 63 do CPC impõe que a eleição de foro só seja válida se houver vínculo com o domicílio das partes ou o local da obrigação. Mais do que isso, considera abusivo o ajuizamento de ações em juízos fora desses critérios, permitindo a alteração da competência de ofício pelo juiz. O problema não está na intenção — que é legítima —, mas no caminho adotado. Ao criar uma regra genérica para todas as situações, a norma ignora a pluralidade das relações privadas e despreza um valor essencial do processo civil moderno: a autonomia das partes.
Como advogada, tenho plena consciência da importância do foro como instrumento de equilíbrio, sobretudo nas relações de consumo e adesão. Mas é inaceitável que contratos empresariais firmados por partes com paridade sejam atingidos por essa presunção automática de vício. O resultado prático é a insegurança jurídica: cláusulas válidas e eficazes ontem tornam-se nulas hoje, sem qualquer análise de contexto, sem considerar a boa-fé das partes ou os efeitos econômicos da mudança.
A advocacia brasileira, representada pelo CFOAB, demonstrou coragem institucional ao tomar posição contra essa distorção. Não se trata de proteger interesses econômicos ou facilitar litígios artificiais, mas de preservar a autonomia dos litigantes, a coerência normativa e o respeito à Constituição. A intervenção judicial deve ocorrer quando há abuso real, não por presunção legal. E é preciso reiterar: liberdade contratual e acesso à justiça não são valores incompatíveis. Pelo contrário, são faces complementares da ordem jurídica democrática.
Por isso, é fundamental que o STF reconheça os limites dessa alteração legislativa e restabeleça a racionalidade do sistema. Não podemos admitir que um mecanismo pensado para proteger se torne um instrumento de interferência desmedida na autonomia privada. A reforma do CPC, se necessária, deve ser feita com escuta técnica, respeito aos fundamentos constitucionais e sensibilidade à diversidade dos contratos. Não por atalhos legislativos que, no fundo, comprometem a previsibilidade e a segurança que o processo deve garantir.