Promotoria põe sob suspeita ‘transtorno esquizoide’ de juiz da ‘nobreza inglesa’ e rejeita acordo
O Ministério Público de São Paulo colocou sob suspeita a alegação do juiz José Eduardo Franco dos Reis de que estaria acometido de Transtorno de Personalidade Esquizoide (TPE). A Promotoria ataca os principais eixos da argumentação do magistrado que se apresentava como “descendente de nobres ingleses” e viveu 45 anos sob a falsa identidade de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, com a qual exerceu carreira por mais de duas décadas no Tribunal de Justiça paulista, até chegar à aposentadoria.
O Estadão pediu a versão da defesa. O espaço está aberto.
Em manifestação de quatro páginas, a Promotoria diz ser contra a instauração de incidente de insanidade mental, procedimento que poderia levar ao reconhecimento de inimputabilidade do juiz, e rejeita taxativamente eventual acordo de não persecução penal, que o livraria do processo criminal.
O Ministério Público rebate todos os pontos da resposta à acusação e o laudo psiquiátrico que a defesa do juiz anexou aos autos da ação penal em curso na 29.ª Vara Criminal da Capital, na qual José Eduardo, que diz ter irmão gêmeo, figura como réu pelos crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso.
O laudo revela diagnóstico de TPE – agrupamento de transtornos excêntricos -, caracterizado pelo distanciamento e desinteresse generalizado por relacionamentos. A defesa afirma que José Eduardo teria adotado a identidade falsa como uma maneira de “começar uma vida nova” após um “drama existencial”, uma resposta a um “quadro psicológico complexo, motivado por frustração pessoal”.
Mas a Promotoria tem uma outra linha de atuação, completamente oposta. “No que se refere à alegação de que o acusado agiu sob a influência de um Transtorno de Personalidade Esquizoide, sem dolo específico de causar dano legal, destaca-se que a narrativa apresentada, sustentada na existência de um suposto irmão gêmeo, foi amplamente refutada pelas provas constantes dos autos.”
O documento pontua que o Cartório de Registro Civil de Águas da Prata, cidade do interior paulista onde nasceu José Eduardo, declarou formalmente a inexistência de qualquer registro de nascimento para Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.
A National Crime Agency do Reino Unido informou não haver qualquer registro de Edward Albert ou José Eduardo em seus sistemas, “eliminando qualquer alegada conexão com autoridades britânicas”.
O síndico do condomínio onde Edward residiu por mais de vinte anos afirmou jamais ter ouvido falar de um irmão gêmeo do juiz. A análise biométrica do IIRGD (Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, da Polícia Civil) “reconfirmou, de forma irrefutável, que as impressões digitais de ambas as identidades pertencem a uma única pessoa”, afirma o MP.
A Promotoria assinala ter verificado movimentos de José Eduardo que, em sua análise, reforçam as suspeitas sobre a conduta dele, sobretudo transações com imóveis.
“Foram identificadas transações imobiliárias em que imóveis adquiridos sob a identidade fictícia foram doados ou vendidos para as irmãs reais do acusado, o que revela motivação patrimonial concreta e estratégica, incompatível com a versão de que os atos teriam se originado exclusivamente de um sofrimento psíquico e sem intenção de causar dano legal ou obter benefício indevido.”

Transtorno seletivo
Além do pedido de instauração de incidente de insanidade mental – procedimento para verificação, através de perícia médica, da saúde mental do réu -, a defesa sustenta “ausência de dolo específico”, “atipicidade da conduta” atribuída a José Eduardo, “inépcia da acusação”, “ausência de potencialidade lesiva” e, ainda, ocorrência de “post factum impunível” (conduta posterior ao crime).
Para a Promotoria, “a refutação sistemática dos fatos narrados pela defesa compromete a credibilidade da tese de que um transtorno mental justificaria as condutas praticadas”.
“O alegado transtorno é por demais seletivo. Há prova nos autos de um ato de disposição de bens, com o uso do nome falso, para a própria irmã, a qual não pode alegar ignorância da situação de dupla identidade, em que pese também haver parentes que renegam a identidade de José Francisco.”
Ainda de acordo com o Ministério Público, “o réu manteve meticulosamente o domínio sobre as duas identidades, com documentação renovada de ambas”.
Ao se opor à instauração de incidente de insanidade mental, a Promotoria criminal enfatiza. “Descoberta as farsas, (José Eduardo) procura apoio no pálio da insanidade, cuja opinião médica juntada não se reveste de qualquer relevância diante do que resultou provado até então. Em suma: para ser juiz e praticar atos de disposição de bens é mentalmente hígido; para responder pela farsa, um esquizofrênico que jamais procurou tratamento para sua alegada moléstia.”
A defesa do juiz também sustenta a inexistência de dolo específico, alegando que ele não teria pretendido “prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”, agindo apenas em razão de uma “questão psicológica existencial, familiar e triste”.
“Essa tese, porém, não resiste à análise da realidade fática”, rebate a Promotoria. “A fraude se estendeu por quase cinquenta anos, período em que o acusado construiu uma carreira como juiz e se aposentou sob a identidade falsa. O longo êxito em ludibriar diversas instituições públicas, incluindo a Receita Federal, Justiça Eleitoral, Detran, Polícia Federal e a Universidade de São Paulo, evidencia, de forma incontornável, a intenção de alterar a verdade sobre fatos juridicamente relevantes e de obter benefícios indevidos.”
José Eduardo obteve dupla inscrição eleitoral, dupla inscrição no CPF, renovou CNH, registrou veículo e tirou passaporte, tudo sob a identidade fictícia Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield. “Essas ações, por si, demonstram a criação deliberada de uma realidade jurídica paralela”, ressalta a Promotoria.
“O envolvimento das irmãs do acusado em transações imobiliárias com bens registrados sob a identidade falsa reforça a existência de um dolo voltado à obtenção de vantagens patrimoniais, afastando por completo a alegação de inocuidade subjetiva das condutas”, segue a manifestação. “Pune-se a falsidade de documentos de identidade, assim como se pune o porte de arma para prevenir outras infrações penais que atingem objetos jurídicos mais relevantes.”
No entendimento do Ministério Público, o documento de identidade “é a expressão máxima da personalidade do indivíduo perante o meio social e mediante o qual são validados atos jurídicos, prescindindo da causação de um resultado naturalístico para além do próprio falso”.
No trecho em que indica uma suposta inépcia da denúncia do Ministério Público, os advogados de José Eduardo afirmam que haveria imprecisão quanto aos documentos falsificados usados para aquisição de veículo e renovação da CNH. Criticam ainda a menção a “razões desconhecidas” no inquérito policial.
“Essa crítica não procede”, pontua a Promotoria. “A denúncia especifica os documentos públicos utilizados, mencionando expressamente o prontuário de biometria do Detran, o prontuário do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) e a ficha de identificação civil do IIRGD. A expressão ‘razões desconhecidas’ refere-se à motivação psíquica profunda que teria levado à criação da identidade fictícia, sem que isso comprometa a descrição clara, detalhada e juridicamente suficiente dos atos criminosos praticados.”
A própria identidade de Edward Albert era ideologicamente falsa, e foi com base nela que todos os atos delituosos foram praticados, de modo que a imputação está bem delimitada e não compromete a ampla defesa, anota a Promotoria.
“As razões nem o próprio réu conseguiu se desincumbir de revelá-las, ao abrigo de um suposto e conveniente transtorno mental.”
A defesa também alega que a tentativa de renovação do RG em 2024 não teria “potencialidade lesiva”, pois acabou frustrada pelos sistemas AFIS/ABIS, da Polícia Civil de São Paulo. Sobre a aquisição do veículo e renovação da CNH, não teria havido “prejuízo a terceiros”.
Traição
“Tal alegação desconsidera a essência da tutela penal da fé pública”, instiga a Promotoria. “A tentativa de manter válida uma identidade falsa, mesmo diante do avanço dos mecanismos de detecção, representa persistência no dolo. A fraude, que perdurou por décadas, permitiu ao acusado não apenas exercer a magistratura, mas fazê-lo sob identidade fraudulenta.”
Em outro trecho, o documento do Ministério Público assinala. “O acusado enganou quase a totalidade das instituições públicas, traiu jurisdicionados, o que caracteriza dano efetivo à fé pública e à integridade do sistema jurídico. Ainda que a transação financeira para aquisição de veículo tenha sido regular, o uso de identidade falsa gerou registros públicos fraudulentos, capazes de produzir efeitos futuros e de comprometer a segurança jurídica.”
A Promotoria anota que “a lesividade não se limita ao prejuízo patrimonial, mas alcança a confiança da sociedade na veracidade dos documentos públicos e dos bancos de dados estatais”.
“No tocante à tentativa da defesa de enquadrar os atos mais recentes como ‘post factum’ impunível da falsificação original de 1980, cumpre esclarecer que tal tese não se sustenta diante da estrutura típica dos crimes em questão nem da conduta reiterada e consciente do acusado”, diz o Ministério Público.
O princípio do “post factum impunível” aplica-se exclusivamente a “atos de exaurimento que não traduzem nova ofensa autônoma ao bem jurídico tutelado”, defende o MP. “No presente caso, ao contrário, cada ato de uso da identidade falsa constituiu novo ataque deliberado à fé pública, com repercussão jurídica própria e finalidade específica.”
“Importa ressaltar – segue o documento – que, mesmo após décadas de uso da identidade fictícia e da consolidação de sua carreira profissional, o acusado manteve ativamente documentos válidos em nome de ‘Edward Albert’ e continuou a praticar atos jurídicos relevantes sob essa identidade, como, por exemplo, a disposição de bens em favor de sua irmã, evidência de que não apenas perpetuou a farsa, mas também utilizou o nome falso para conferir aparência de licitude a negócios patrimoniais relevantes.”
Engodo
“Tais atos não são resquícios da fraude inaugural, mas manifestações atuais e conscientes de sua manutenção e aproveitamento”, segue a Promotoria. “Mais ainda: ao contrário do que sugerem os argumentos defensivos, o acusado teve diversas oportunidades para estancar a série de falsificações, inclusive ao longo de sua trajetória funcional ou após a aposentadoria, momento em que poderia ter abandonado o uso da identidade falsa e retomado sua identidade real. Contudo, optou por prosseguir no engodo, inclusive tentando renovar, em 2024, o documento de identidade já então incompatível com os sistemas de verificação biométrica.”
O Ministério Público considera que !a tentativa recente, embora frustrada pelos avanços tecnológicos, evidencia sua (de José Eduardo) intenção presente de seguir usufruindo das vantagens da identidade fictícia, o que descaracteriza por completo qualquer alegação de exaurimento ou absorção pelo crime originário!.
“Cada renovação de documento, cada inserção de dados falsos em bases estatais distintas, cada uso reiterado da identidade ideologicamente falsa, representa nova e independente violação da fé pública, justificando a imputação de múltiplos crimes em concurso material, nos termos dos artigos 299 e 304 do Código Penal”, crava o parecer.
Segundo a Promotoria, !a fraude não foi estática, mas progressiva e atualizada conforme as necessidades do agente, o que torna inaplicável qualquer tentativa de enquadramento na doutrina do ‘post factum’ impunível”.
Sobre o pedido para acordo de não persecução criminal, na avaliação da Promotoria, “há óbices relacionados à quantidade de pena imposta aos delitos que somadas ultrapassam quatro anos de reclusão”.
“Não se trata, por outro lado, de direito subjetivo do acusado e, francamente, o pedido contrasta com a alegação do próprio réu de que seria acometido de transtorno mental”, pondera a Promotoria. “Como poderia o Ministério Público, sem menoscabo de direitos fundamentais do próprio acusado, dele exigir confissão pormenorizada nos fatos e o cumprimento de pena diversa da privativa de liberdade em acordo com pessoa mentalmente enferma?”
A Promotoria indica também. “Ainda que fosse possível do ponto de vista objetivo, não há o mínimo espaço para a concessão de proposta da benesse sob o ponto de vista subjetivo, fatos já analisados na cota introdutória à denúncia.”