Bate-bocas minam poder do Congresso de dialogar e construir políticas públicas, dizem especialistas
BRASÍLIA — O Congresso vem perdendo a sua capacidade de diálogo e construção de debate acerca de temas de interesse público, na medida em que se torna palco para audiência nas redes sociais. Nesse processo, bolsonaristas têm ocupado o protagonismo de episódios em que o bate-boca encobre a discussão de políticas públicas.
A avaliação é de cientistas políticos consultados pelo Estadão sobre casos cada vez mais frequentes de baixaria no Congresso Nacional. Esse tipo de cena vem se tornando comum a partir do convite para ministros de Estado esclarecerem dúvidas sobre medidas do Executivo em audiências na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por exemplo, antecipou o encerramento de uma audiência pública na Câmara na quarta-feira, 11, após bate-boca com os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Carlos Jordy (PL-RJ), que deixaram a sala antes de ouvir as respostas a perguntas que eles mesmos tinham feito. Haddad foi chamado para falar dos impactos da isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e outras medidas econômicas.
Duas semanas antes, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, abandonara uma sessão pública para debater a criação de unidades de conservação na Margem Equatorial após ser desrespeitada pelos senadores Plínio Valério (PSDB-AM) e Marcos Rogério (PL-RO).
Os “cortes” gerados nesses momentos de embate, em que o parlamentar demonstra enfrentar o adversário e não se deixar recuar, consentir ou titubear, e compartilhados nas redes sociais, são ponto central desse comportamento. Isso porque, como os parlamentares pinçam apenas os momentos que lhe são favoráveis para publicá-los online, a parte de ouvir o interlocutor deixa de fazer sentido.
Carolina Botelho, cientista política pela Uerj e do INCT-Sani (CNPq), afirma que a performance política dos parlamentares bolsonaristas nesses espaços públicos “é tão ou mais importante do que a sua agenda”, uma vez que promover a cizânia, segundo ela, é seu principal capital enquanto legisladores.
“Eles têm instrumentos e recursos suficientes para desestabilizar toda a institucionalidade, cujo rompimento é o foco desse grupo. Assim eles conseguem manter a coesão e adesão de parte do eleitorado que se vê representada nesses discursos extremistas”, declara ela.
Doutora em ciência política pela USP e professora na FGV, Graziella Testa diz não ver nesses bate-bocas um desgaste na relação entre os Poderes Executivo e Legislativo, mas um componente eleitoreiro. Ela defende regras para coibir atitudes parlamentares exercidas visando apenas gerar audiência na internet.
“Existe uma tentativa muito desesperada de fazer campanha. Não há outra motivação que não seja eleitoral e de construir conteúdo para as redes sociais. Esse comportamento precisa ter alguma regulação no Legislativo, porque prejudica a construção de política pública e a própria fiscalização do Poder Executivo”, declara.
O cientista político e professor do Insper Carlos Melo diz que o Parlamento brasileiro tem perdido a sua tradição de diálogo, em detrimento de “embates em que não se acrescenta nada, não se constrói nada”. Ele remete a postura beligerante a uma forma de enfrentamento popularizado na década passada.
“A partir de 2013 foi se estabelecendo no Brasil uma política rebelde, uma política que gosta de se chamar nova política, mas é a negação da política. Porque a política é a arte do possível, a arte da conversa, da negociação, a busca de consenso. E o que emergiu das manifestações de 2013 não foi a construção, foi a destruição ‘de tudo aquilo que está aí’”, afirma ele.
Melo atribui à independência que o Congresso conquistou em relação ao Executivo, a partir da explosão nos valores das emendas impositivas e do aumento nos fundos partidário e eleitoral, um novo tipo de relação entre os dois Poderes. Isso porque parlamentares não precisam, diz ele, sentar e negociar para obter recursos do Palácio do Planalto.
“Isso trouxe, ao invés de uma autonomia responsável, trouxe uma relação de desrespeito. À medida que o Parlamento não depende mais do ‘beija-mão’ ao Executivo, você acaba tendo esse tipo de relação atritosa, essa coisa que a gente tem visto”, afirma.
O valor das emendas parlamentares aprovadas para 2025, de R$ 50,4 bilhões, ultrapassa a soma dos recursos livres para investimentos de 30 dos 39 ministérios, como mostrou o Estadão.
O crescimento dessas verbas fortalece o Congresso e esvazia o poder das pastas como moeda de troca política, alterando a dinâmica da articulação do governo: se antes um ministério representava acesso privilegiado a verbas e influência no Planalto, hoje deputados e senadores controlam diretamente bilhões para suas bases, reduzindo a dependência do Executivo e enfraquecendo o poder de barganha de Lula.
Os casos de baixaria vêm de anos atrás, mas têm se avolumado. No mês passado, o ministro da Previdência, Wolney Queiroz, e o senador Sergio Moro (União-PR) bateram boca após acusações de omissão em fraude do INSS. Em 2023, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, abandonou uma audiência pública em meio a um clima de tumulto generalizado com bolsonaristas. Em 2019, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, foi chamado de “tchutchuca do mercado” pelo deputado federal Zeca Dirceu (PT-PR), e a confusão também precipitou o fim da sessão.