Prisão na CPI das Bets: a criminalização de conveniência
A prisão ocorrida no último dia 29 de abril durante a sessão da CPI das Apostas Esportivas (CPI das Bets), reacendeu um debate jurídico sensível: os limites (e a manipulação) da imputação do crime de falso testemunho, especialmente quando o depoente é potencial investigado ou envolvido nos fatos.
No contexto apresentado a prisão, solicitada pela senadora relatora, ocorreu sob a acusação de que o depoente teria mentido diante da comissão parlamentar. Contudo, por trás do gesto midiático, emergem dúvidas estruturais: pode alguém ser preso por supostamente falsear a verdade em sua própria defesa?
Nesse aspecto, é necessário ressaltar que as CPIs exercem funções de investigação e fiscalização, mas não estão isentas dos limites constitucionais que regem qualquer persecução estatal, como a necessária observância da garantia contra a autoincriminação.
Isso porque nenhuma pessoa pode ser obrigada a produzir prova contra si mesma — seja em juízo, seja em qualquer outro órgão público com poder coercitivo, o que não se revela apenas como um princípio ético do processo penal, mas uma cláusula pétrea decorrente do devido processo legal.
Ademais, é possível notar uma linha tênue entre a mentira deliberada com o objetivo de prejudicar terceiros — conduta típica do art. 342 do Código Penal — e o silêncio estratégico ou a imprecisão intencional de quem tenta se preservar frente à possibilidade de responsabilização penal.
Desse modo, quando o depoente opta por omitir ou distorcer fatos que o incriminariam, o que há, muitas vezes, é o exercício legítimo do direito à não autoincriminação, de forma que a imputação de crime em tais situações gera o risco de transformar o falso testemunho em instrumento de coação e retaliação institucional.
Outrossim, os Tribunais Superiores já se debruçaram sobre essa ambiguidade, com entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não comete falso testemunho aquele que falta com a verdade para evitar autoincriminar-se, justamente por conta da proteção constitucional já mencionada. Do contrário, admitir-se-ia uma espécie de “auto inquirição” forçada, incompatível com o Estado de Direito.
Necessário pontuar, portanto, que esse tipo de criminalização postiça, que transforma conflitos institucionais ou desobediências em delitos formais, é especialmente perigosa em comissões parlamentares, considerando que as CPIs são espaços de tensão política e institucional, onde o impulso punitivo pode se sobrepor à racionalidade garantista, que deve nortear os esforços destinados a elucidar os fatos.
A criminalização estratégica do falso testemunho serve, nesses casos, a um duplo propósito: o de constranger o depoente e o de construir um espetáculo de autoridade para a opinião pública. Em ambos, há grave desvio de finalidade e afronta a direitos fundamentais.
Não se trata, todavia, de defender a mentira ou a obstrução, mas de reconhecer que o ordenamento jurídico não permite que se puna alguém por exercer o seu direito de não colaborar com a própria incriminação.
Por conseguinte, a permissão de que o crime de falso testemunho seja manipulado como ferramenta de coerção em contextos político-midiáticos esgarça o compromisso com o devido processo legal e com o modelo de preservação das garantias constitucionais defendido pelos poderes da república, de como que a lei penal não pode ser utilizada como “bastão de intimidação”, e o Parlamento, como tribunal inquisidor.