4 de novembro de 2025
Politica

Entre a impunidade e o Estado permanente de dissonância cognitiva

No final do século XX, o Brasil ainda se reconhecia nos contornos modestos de um pacto coletivo. Não era perfeito, mas a Lei demarcava a fronteira do possível e delineava as linhas clássicas da separação de Poderes. Também existia algum pudor institucional e a velha lição republicana de que não cabe ao juiz legislar, nem ao intérprete moldar o mundo às suas preferências pessoais. Era, portanto, a tentativa de construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Porém, aos poucos, o cenário mudou. Os “legisladores de capa” buscaram protagonismo, e a exceção virou regra. A convicção íntima passou a posar de princípio universal e a usurpar o espaço da Lei. E, quando o Direito cochila, o Estado Paralelo desperta e, nesse vazio, a impunidade cria raízes.

O exemplo mais recente veio dos morros do Rio de Janeiro. Enquanto, à distância, parte de Judiciário, academia, mídia e artistas questionava a operação policial em curso, quem vive o terror cotidiano aplaudiu o que percebeu como legítima reação do Estado ao avanço do crime organizado. Segundo levantamento da AtlasIntel, 87,6% dos moradores de favelas aprovaram a operação; no município do Rio como um todo, a aprovação superou a média nacional. Ou seja, quanto mais perto das consequências cruentas do crime, maior o apoio dado ao seu combate.

Aliás, não é de hoje que se flerta com a impunidade estruturante neste país. Ao longo de décadas, o país coleciona operações anuladas por teses voláteis, decisões que, de véspera em véspera, transformam o certo em errado e o ilícito em “mal-entendido”.

O repertório ganhou novo capítulo emblemático quando o governante de ocasião, beneficiado outrora pela mesma fábrica de nulidades, declarou que “traficantes são vítimas dos usuários”. A frase não surgiu do nada: ecoa diretrizes do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária 2024–2027, que propõe superar a “guerra às drogas”, estimular debates de descriminalização e abrir trilhas de desencarceramento seletivo. Inflexão evidente na lógica de enfrentamento ao narcotráfico que se alastra.

As cifras reforçam a sensação de descompasso. Em exposição no Senado, registrou-se que, apenas em 2024, o STJ concedeu 9.166 habeas corpus a acusados de tráfico e o STF, 577. O volume e o perfil dos casos alimentam a percepção social de “salvo-conduto” ao crime organizado.

A ADPF 635 (“das Favelas”), concebida para reduzir a letalidade policial, por anos impôs condicionantes severos à atuação em áreas dominadas por facções. O efeito percebido nos territórios, contudo, foi outro: mais barricadas, mais enclaves e uma rotina de medo à luz do dia.

Afinal, onde o Estado se retrai, o crime prolifera. Lição básica de qualquer política séria de segurança pública, confirmada pela geografia do crime. Em 16 anos, a área do Grande Rio sob controle de grupos armados dobrou; em 2023, o Comando Vermelho ampliou sua fatia em regiões da metrópole. A nível nacional, estimativa recente indicou 28,5 milhões de pessoas vivendo em áreas dominadas por facções criminosas.

A população não vive de teses, mas de medo, de comércio que fecha às pressas, de sirene ao longe e de tiro de perto. Por isso, quanto mais próximo do crime, maior o clamor por punição e por presença do Estado. Algo visível diariamente nas filas do ônibus, nos corredores dos hospitais, nas janelas das vielas.

Apesar disso, os “garantistas de ocasião” ecoam, em coro, que reprimir o crime é violência estatal, enquanto absolvem, sem rubor, a violência que domina ruas, escolas e hospitais. A academia glamoriza teorias que descolam o Direito da realidade. Parte da mídia dá palco a “especialistas” que tratam o criminoso como vassalo inocente de um sistema sem pessoas. E artistas, não raro, vendem como “poesia social” o que, no morro, vivencia-se como dominação pela força.

Eis a dissonância cognitiva que o país atravessa: enquanto “deuses” de um Olimpo institucional traçam destinos como se a realidade fosse ficção, os mortais pagam a conta em um país onde até o óbvio parece precisar de habeas corpus.

É certo que nada disso confere licença para abuso, mas tão somente o retorno ao velho contrato social firmado. O combate ao crime organizado e a defesa da coisa pública são deveres positivos do Estado na defesa dos direitos fundamentais de proteção da vida em sociedade.

Todavia, a saída desse Estado de dissonância cognitiva permanente exigirá que algumas verdades convenientemente esquecidas sejam relembradas: a Lei não é metáfora, direitos têm deveres por contraface e garantir a segurança pública dos cidadãos é a finalidade primeira do Estado de Direito.

O resto – discursos, likes e poses – é cortina de fumaça em uma praça sitiada, onde os reféns são justamente os que clamam pela proteção coletiva sonegada.

 

 

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