Advocacia brasileira e o combate à lavagem de dinheiro: nem cúmplice, nem informante
A recomendação recém-divulgada no âmbito da Convenção da ONU contra a Corrupção recolocou a advocacia no centro do debate público: caberia ao Brasil estender obrigações antilavagem a escritórios de advocacia. A indicação recomenda, por escrito, que o Brasil regule as obrigações de advogados e outros profissionais jurídicos para prevenir a lavagem de dinheiro (art. 14, §1º). O sumário executivo da revisão de 30 de abril de 2025 é literal: “Regulate the obligations of lawyers and other independent legal professionals in respect of countering money‑laundering.”
Há anos se discute o tema; a Lei nº 9.613/1998 é ampla; os cartórios foram regulados; e a autorregulação que a Ordem dos Advogados do Brasil chegou a amadurecer em 2021 estacionou, em respeito à proteção ao sigilo profissional e da rejeição à criminalização do ofício.
O assunto voltou — e, desta vez, precisamos enfrentá‑lo com serenidade e firmeza. Falo como criminalista e como presidente de Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas. Sou, por dever institucional, um guardião do sigilo profissional. Sem confiança, ninguém fala com o advogado ou com advogada; sem advogado, o Estado fala sozinho, e age sem qualquer limite. Por isso, transformar a defesa técnica em canal de delação automática é um erro civilizatório. Mas o oposto — fechar os olhos para zonas de risco que nada têm a ver com a nossa missão — também é uma escolha ruim. O equilíbrio existe, é praticável e depende de distinguir com precisão onde termina a advocacia e onde começa a intermediação econômica.
A boa literatura jurídica e experiências estrangeiras dão o mapa. Não se mexe no núcleo essencial da profissão — defesa, representação técnica, consultoria jurídica. Aí o sigilo é pedra angular. Fora desse núcleo, quando o profissional passa a estruturar negócios, gerir patrimônio, intermediar operações, já não se fala de defesa, mas de atividades econômicas que podem — com salvaguardas — receber obrigações de integridade. Essa distinção, sustentada por análises técnicas recentes, é a chave para evitar caricaturas de “criminalização da advocacia” e, ao mesmo tempo, fechar a porta para usos desviados do crachá.
Aliás, tenho recebido na Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia, várias denúncias sobre agentes do Estado tentando se intimidar a advocacia, com o argumento de criminalização de sua atuação, quando por exemplo, o advogado aconselha ao cliente que não colabore com a investigação, valendo-se do direito ao silêncio e da não-autoincriminação – nemo tenetur se detegere, e que essa conduta configuraria crime gravíssimo de atrapalhar a investigação, previsto na Lei de Organizações Criminosas.
Aconselhar o cliente a exercer o direito ao silêncio e à não autoincriminação é exercício regular de um direito fundamental — e não “obstrução”. A tentativa de criminalizar a advocacia por cumprir o seu dever corrói o devido processo legal e atinge o cidadão que amanhã precisará de proteção.
O núcleo essencial da profissão — defesa, representação técnica e consultoria jurídica — não pode ser tocado. Aqui o sigilo é pedra angular. Tipificar como “obstrução” o conselho técnico para que o cliente exerça o direito ao silêncio viola o devido processo legal e corrói garantias que amanhã protegerão qualquer cidadão.
Isso sem considerarmos as indevidas classificações – por ignorância técnica ou intencional má-fé do agente público – de lavagem de dinheiro, situações que em verdade são unicamente o exaurimento de um possível crime antecedente – o mero ato de gastar o dinheiro, ainda que produto de crime, não é lavagem de dinheiro.
Não é teoria. Quem milita na área sabe que há tentações triviais: “honorários” que viram conta de passagem; depósito por terceiros sem vínculo; pedidos para que o escritório faça recebimento informal; insistência em espécie, cripto ou cadeias de repasse sem formalização ou registros fiscais e contábeis. Isso não é advocacia. O nosso papel é dizer não — com norma interna, registro mínimo de decisão e, se preciso, ruptura limpa do mandato, preservado o sigilo do conteúdo técnico.
É por isso que se defende um padrão brasileiro de integridade para o setor, que caberia, primeiro, à própria classe adotar e, depois, consolidar institucionalmente, sem tocar no sigilo da defesa. Esse padrão começa dentro de casa. Nos contratos de honorários advocatícios deve haver uma cláusula simples e objetiva: o cliente declara que a origem dos valores destinados a honorários é lícita; os pagamentos serão rastreáveis e no nome do próprio cliente; o escritório não recebe para repassar a terceiros; que será sempre emitida nota fiscal sobre o recebimento; indícios concretos de fraude ou lavagem autorizam a rescisão motivada. Não é burocracia: é alinhar expectativas, proteger o profissional correto e desestimular quem procura “atalhos”.
A partir daí, há providências corriqueiras que qualquer banca séria consegue implementar sem virar instituição financeira e sem rasgar o sigilo: conhecer o cliente e o beneficiário final quando a atuação sair do perímetro da defesa; documentar, com parcimônia, o propósito lícito de operações não jurisdicionais; vedar pagamentos em espécie e recusar “adiantamentos” sem lastro; manter distância sanitária do dinheiro que não seja, de fato, honorário. São hábitos profissionais, não um “KYC bancário – ‘know your client’ – conheça o seu cliente” transplantado para dentro do escritório.
“E se, ainda assim, o Brasil decidir impor à Advocacia algum tipo de comunicação?” — é pergunta que paira no ar. A resposta é clara: jamais no núcleo da advocacia. Se — e somente se — houver hipóteses restritas, elas devem alcançar apenas atividades não nucleares e passar por um filtro institucional da Ordem, de modo que nada do conteúdo defensivo ou consultivo transite às autoridades. Essa solução, que dialoga com experiências europeias e preserva a confiança, é o antídoto contra a ideia de transformar o advogado em informante do Estado.
No plano normativo, a realidade atual ajuda a separar as coisas. A legislação antilavagem brasileira desenha um sistema preventivo robusto, mas não inclui expressamente a advocacia no rol de sujeitos obrigados. Essa constatação não é salvo conduto para a classe; é um convite a que a própria advocacia preencha o espaço com padrões sérios, sob pena de ver terceiros fazê-lo por nós, de forma açodada e imprecisa, com danos colaterais ao direito de defesa.
Nossa Lei de Lavagem, a 9.613/1998, é ampla o suficiente para alcançar serviços de assessoria/consultoria em compra e venda de imóveis, gestão de ativos, abertura de contas e constituição de empresas. Mas o FATF/GAFI (Grupo de Ação Financeira, entidade intergovernamental que define padrões internacionais para combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo e o financiamento da proliferação de armas de destruição em massa) registrou, em 2023, que a OAB não regulou obrigações para a classe; resultado: advocacia segue, na prática, fora das exigências de CDD/estruturas antilavagem — e o país foi avaliado como “parcialmente conforme” nas Recomendações 22 e 23. Em contraste, cartórios já têm disciplina específica, hoje consolidada no Prov. 149/2023 e atualizada pelo 161/2024 do CNJ.
A pesquisa empírica mostra uma tendência de enrijecimento legislativo pós‑2014 e, sobretudo, pico em 2019, com 42 projetos na Câmara (2013–2022), vários mirando honorários e deveres do advogado — inclusive tipos penais para quem não reportar suspeitas. A engenharia do punitivismo fácil costuma acertar os de sempre e desarrumar garantias. É nosso papel oferecer saída institucional responsável.
As lições estão dadas: blindagem total do núcleo essencial; escopo taxativo para o que é atividade não jurisdicional; proibição expressa de honorários de trânsito; governança mínima; e, se houver qualquer comunicação, que seja mediada pela OAB e jamais direta, justamente para preservar a confidencialidade que nos constitui. É possível compatibilizar tradição e integridade — e é nossa responsabilidade fazê-lo.
O que não podemos é aceitar dois extremos igualmente nocivos. De um lado, a tese de que o sigilo é “relativo por natureza” e que o advogado deve “cooperar” indistintamente — isso destrói a confiança e pune o cidadão comum, que precisa de um lugar seguro para falar. De outro, a zona cinzenta que confunde escritório com intermediário financeiro — isso mancha a reputação coletiva, alimenta generalizações contra a classe e abre a porta para respostas legislativas de emergência.
Entre o atalho e a anomia, há um caminho brasileiro: blindar sem concessões o núcleo essencial; delimitar taxativamente as atividades não nucleares; governança mínima de integridade no setor; e, se houver comunicação, mediação pela OAB.
Isso nos permite afirmar, com a mesma convicção: não entregamos nossos clientes — porque sem confiança não há Justiça — e não seremos cúmplices — porque sem legalidade não há Estado de Direito, e assim mantemos nossa credibilidade que nos consagrou a Constituição Federal no artigo 133.
